O filme A Colina Kokuriko do Studio Ghibli retrata o Japão de 1963. Esta animação japonesa mostra os personagens que convivem com os traumas da Segunda Guerra e da Guerra da Coreia e que agora, passam a fazer um balanço histórico do passado recente, frente às novidades e desafios que a realização das Olimpíadas no país trará para suas realidades.

A Colina Kokuriko, ou seu título em japonês, Coquelicot-zaka kara, é o segundo filme dirigido por Goro Miyazaki, sendo que seu pai, Hayao Miyazaki e Keiko Niwa, ficaram encarregados do roteiro. Depois de críticas sobre seu primeiro filme, Contos de Terramar (2006), inclusive da parte do enredo, que não atingiu expectativas boas nem do público e de seu pai, Goro conseguiu dirigir muito bem sua segunda animação que retrata uma história slice of life nos anos 60.

O ponto alto do drama é a relação entre os personagens Matsuzaki e Kazama, de tal maneira que o passado desses personagens influi de maneira significativa na construção do enredo, como contexto histórico social do drama.

Enredo de “A Colina Kokuriko”

Protagonista Umi Matsuzaki

No topo de uma colina com vista para um porto à beira-mar, fica uma pensão chamada “Coquelicot Manor”. O prédio é administrado pela família de Umi Matsuzaki, uma estudante secundarista da escola local, que realiza diversas tarefas envolvidas na administração do lugar, tal como preparar as refeições para os pensionistas. 

A mãe de Umi estuda medicina nos EUA, enquanto seu pai era um marinheiro que faleceu devido à explosão do navio de carga ao esbarrar em uma mina durante a Guerra da Coreia. Como o pai ensinou à Umi comunicação por bandeiras náuticas, todos os dias a garota hasteia bandeiras para os navios que passam pelo porto. 

No colégio, a casa de clubes será demolida para dar lugar a um edifício moderno. Por conta disso, grande parte do corpo discente se uniu, trabalhando incansavelmente para impedir que isso acontecesse. Umi ajuda a casa de clube com os jornais, divulgando informações a favor dessa causa. 

Umi e Shun no Quartier Latin

Neste trabalho, Umi conhece Shun Kazama, um garoto órfão que pouco sabe sobre o seu próprio passado e por quem ela se apaixona. Os jovens começam a investigar o passado do garoto e descobrem que podem ter muito mais em comum do que eles poderiam imaginar.

A Colina Kokuriko é baseada no mangá homônimo de Chizuru Takahashi e Tetsuro Sayama de 1980. O filme foi lançado em 2011 e recentemente entrou para o catálogo da Netflix, junto com outros filmes do Studio Ghibli.

Os anos 60 do Japão: Pós Segunda Guerra e Guerra da Coreia

A Coreia foi governada pelo Japão desde 1910 até o fim da Segunda Guerra Mundial, após a derrota dos japoneses em 1945. Em 1950, começa a Guerra da Coreia, conflito armado, travado entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, no contexto da Guerra Fria. 

A península coreana foi dividida entre os americanos e soviéticos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Conhecido como Paralelo 38, determina-se qual parte norte da península seria ocupada pelos soviéticos e qual parte ao sul seria ocupada pelos americanos. Assim, cada qual ocupando-a militarmente e desenvolvendo um regime alinhado aos seus interesses. 

Dessa forma a guerra eclodiu quando tropas norte-coreanas iniciaram a invasão na Coreia do Sul. As tropas chinesas entraram na guerra apoiando o exército norte-coreano. A indústria japonesa foi uma das principais responsáveis pelo fornecimento de armas para os Estados Unidos na Guerra da Coreia e mais tarde, na Guerra do Vietnã. A guerra da Coreia se encerra em 1953.

No Japão dos anos 60, tem-se a “reconstrução econômica”, impulsionada pela assistência dos Estados Unidos que fornecem assistência política e concedem créditos para a reconstrução do Japão, além também de moldar a cultura e a política japonesa, fazendo que o Japão deixe para trás seu passado feudal. Nesse cenário, em 1964 acontecem os Jogos Olímpicos realizados em Tóquio, no Japão, os primeiros jogos a serem realizados na Ásia. Essa assistência norte-americana aos japoneses está diretamente relacionada ao contexto da Guerra Fria. Um mundo dividido entre as disputas de influências capitalistas dos Estados Unidos da América versus a força socialista de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

A relação diplomática entre o Japão e Coreia do Sul só foi oficializada em 1965, com um Tratado de Relações básicas. A partir desse tratado, o Japão reconhece a República da Coreia (o nome oficial da Coreia do Sul) como o único governo legítimo na península coreana. A Coreia do Norte segue não tendo relações diplomáticas oficiais com o Japão.

Como é retratado em “A Colina Kokuriko”

O Japão dos anos 60 retratado no filme então é caracterizado por uma sociedade em transição entre o passado histórico tradicional marcado por guerras para uma modernidade resultante do fortalecimento da economia e consolidação do Japão como um polo econômico da época. Nessa transição, a cultura e as tradições japonesas não ficam ilesas às transformações do novo e os personagens  passam a questionar: É necessário renegar o passado para dar espaço ao novo?

Essa valorização do passado se dá primeiramente no arco narrativo de Umi e Shun. Umi perdeu seu pai durante a Guerra da Coreia e Shun não sabe sobre seu pai. Entretanto, mais tarde descobrimos que o pai do garoto também faleceu na Guerra da Coreia, onde ele era um capitão de um navio de suprimentos.  

Desse modo os dois personagens vão, ao longo do filme, em busca de mais detalhes sobre o passado de suas famílias. Assim, eles têm que lidar com essas descobertas no presente. Não só os dois personagens, mas muitos japoneses perderam familiares durante a guerra e sentem impactos até hoje. Então, a questão da memória é algo muito presente e debatido durante a história do filme. 

Podemos relacionar a questão da memória com o próprio Japão, como comenta Miguel Serpa (2018) em seu texto no Medium sobre a análise do filme: “Ambos os personagens também sentem os impactos da guerra até hoje, tendo perdido parentes tanto na Segunda Guerra, quanto na Guerra da Coréia, o que pode ser relacionado com o próprio Japão, que sente as sequelas, sobretudo da Segunda Guerra, até hoje.”

Quartier Latin e a questão da memória

Quartier Latin

Outro aspecto do filme que trata da valorização do passado está relacionado à demolição do Quartier Latin, a casa de clubes do colégio. Os alunos debatem sobre o destino do prédio, e alguns acreditam que o local deve ser preservado por seu valor histórico. Enquanto que outros preferem a construção de um prédio mais moderno. Ou seja, para se adequar às mudanças que ocorriam no Japão. 

A história segue entre ondas de modernidades e manutenção do passado, acompanhadas pela novidade da realização dos Jogos Olímpicos no Japão. Ao meio de preocupações e inquietações dos personagens em seus dramas pessoais e locais, os cartazes do evento olímpico anunciam que as mudanças já estão postas na realidade de todos e a população passa a ver possibilidades de uma sociedade mais moderna, agora com fatos concretos.

O desfecho do drama gira em torno do destino do Quartier Latin. O clube traz na fala dos alunos a reflexão acerca do debate entre a tradição e o moderno e até em que certo ponto um precisa dar o lugar ao outro. Nesse embate, alguns alunos defendem a construção de um novo prédio para o Quartier Latin, enquanto que outros, como Shun, acreditam que não seria necessária a demolição do prédio, muito menos apagar o passado para dar espaço ao novo. Shun ressalta, em um dos momentos que os alunos estão debatendo sobre o futuro do prédio: “Não há futuro para as pessoas que veneram o futuro e renegam o passado”.

Tradução: “Destrua o antigo e destrua a memória do nosso passado”

O próprio Quartier Latin faz referência à memória, no caso, a memória estudantil do autor GoroQuartier Latin foi inspirado no bairro em Paris de mesmo nome, que tem uma concentração de universidades e de escolas. E na entrevista ao New York Times em 2013, Goro comentou que o Quartier Latin foi uma inspiração aos anos que ele viveu na faculdade. Quando os jovens se reuniam em lugares que geralmente eram espaços bastante sujos, mas que representavam uma história por trás daquele lugar.

Como os pontos técnicos ajudam na criação do cenário histórico social

Além do roteiro, a animação reforça ainda mais o ambiente dos anos 60 do Japão retratado pelo filme. Assim temos cenários que remetem a industrialização, forte na época. Junto com uma cidade com um grande movimento, em que os moradores estão em suas rotinas movimentadas, se adequando às mudanças que o Japão está acolhendo. As roupas que os personagens usam também ajudam na caracterização da época, inclusive os uniformes que os alunos da escola de Umi usam. 

Uma curiosidade sobre a animação é que ela foi afetada por conta de um terremoto que ocorreu em 2011 no Japão. Portanto os animadores precisaram trabalhar intensamente durante algumas noites para conseguirem finalizar o trabalho dentro do prazo. 

Outro fator que reforça a ambientação dos anos 60 é a trilha sonora. Se compararmos com outros filmes do Studio Ghibli, que apresentem trilhas mais comuns, essa tem uma característica de trilha de localização, que remete ao local que estamos acompanhando no filme. As músicas poderiam até tocar nas rádios da época que faria sentido para quem está assistindo. 

Desse modo, a direção consegue trazer questões técnicas, como animação e trilha sonora, a ambientação necessária que o roteiro precisava. Assim, Goro Miyazaki consegue nos trazer uma evolução de seu trabalho, com grande detalhamento desses elementos para causar uma boa ambientação em seu filme. 

A repercussão de “A Colina Kokuriko” no ocidente

Dessa maneira, por ser um filme que retrata um período histórico japonês, é esperado que tenha uma repercussão mais baixa no público do ocidente. Isso pode causar um afastamento, como outros filmes do Studio Ghibli que tem essa proposta de retratar um período japonês ou simbolismos da cultura nipônica. Entretanto um ou outro conseguem se destacar.

Portanto, o filme A Colina Kokuriko consegue trabalhar muito bem o cenário histórico social dos anos 60 do Japão. Podemos até fazer uma comparação com o filme com A Viagem de Chihiro (2001), que já analisei aqui no site. Enquanto Kokuriko traz o começo e os questionamentos dessa mudança na economia e cultura japonesa, Chihiro já traz críticas. Em Chihiro, que se passa no final dos anos 90, vemos uma crítica clara então aos hábitos consumistas que se instalaram entre os japoneses após o crescimento econômico dos anos 60 e que acabaram por gerar uma crise econômica ao Japão. 

Em suma, A Colina Kokuriko consegue ser um slice of life que se passa em um período japonês muito bem retratado. Abordando questões do passado e o resgate de memórias, trazendo então à tona uma crítica sobre como o Japão reagiu à onda de modernidade capitalistas versus suas tradições culturais.

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