Após o texto “Política na Indústria dos Animês e Mangás: Por Que o Tema é um Tabu?”, resolvemos continuar o assunto neste texto, para explicar com mais detalhes as relações entre os animês/mangás que foram muito populares dos anos 1940 até o fim do século XX e a política no pós-guerra. 

Assim como dito no texto anterior, os mangás surgiram ainda no início de 1900, não nos moldes modernos e de narrativa de hoje, mas ainda assim foram fundamentais para iniciar um mercado de quadrinhos no Japão. E desde lá sátiras políticas e críticas sociais eram comuns. 

Isso não mudou no pós-guerra, na verdade, disparou com várias críticas contra guerra e bombas nucleares. Entre outros aspectos que se relacionavam com o sentimento japonês pós-guerra. Vamos então começar do começo. 

Osamu Tezuka e o discurso otimista

O Tezuka foi um dos mangakás de sucesso no pós-guerra, que com sua fama, também conseguiu criar uma produtora de animação e alavancar ainda mais a popularidade de suas obras, como Astro Boy, Princesa e o Cavaleiro, Black Jack, Dororo, Kimba e tantas outras histórias. Ele foi uma verdadeira referência para sua época, e por isso ele ainda é tão lembrado nos dias de hoje. 

E como esperado, ele foi o precursor do ressurgimento do mercado de mangás e, posteriormente, de animação após a 2ª Guerra Mundial. O Japão sofreu muito com a Guerra, não apenas pelas mortes em campo de guerra, mas pelo próprio governo imperialista japonês, que tomou decisões militaristas e violentas, o que levou a população à extrema pobreza e queda brusca de produção de trabalho. A intenção deste texto não é aprofundar nos impactos que a guerra teve no Japão, mas há outros textos que falam um pouco mais sobre¹.

Tezuka nasceu em Osaka, em 1928, em uma família de classe média alta, portanto teve boas condições de vida para alimentar seu desejo de criar histórias criativas. No entanto, as coisas ficaram difíceis para todos quando o Japão entrou em guerra com a China, a partir de 1933, e esse ambiente violento se arrastou até o fim da 2ª Guerra Mundial, em que o Japão apoiou a Alemanha e foi destruído pelas forças dos Aliados (EUA-Reino Unido, França e URSS).

O mangá conta a história de Black Jack, um médico que atende casos complicados e usa técnicas desconhecidas para curar seus pacientes.

Foi uma época bem difícil, que Tezuka queria fazer faculdade, mas não conseguiu por conta da guerra. Após 1945, ao ver os destroços da bomba, e todo o choque com as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, Tezuka queria ajudar de alguma forma, para levar otimismo para a população sobrevivente. 

“Tezuka logo percebeu que qualquer coisa que quisesse realizar naquela época dependia totalmente de sua iniciativa e dedicação absoluta. Assim, aos 17 anos, na condição de estudante de medicina Tezuka passou a publicar num jornal de Osaka “Ma-chan no Nikki-cho” (O Diário de Ma-chan), uma série de tiras em quadrinhos humorísticas sobre as travessuras de um menininho doce e ingênuo.” (SATO, 2007, p. 126)

E apenas em 1946 ele recebeu uma oportunidade de criar uma história de 200 páginas, o que era um material extremamente luxuoso para a época, já que o papel era de difícil acesso ainda. Foi a partir daí que o Deus do mangá canalizou todas suas forças criativas para criar um mangá revolucionário pra sua época: Shin Takarajima, que até falamos no texto anterior linkado no primeiro parágrafo deste texto. 

Esse foi o pontapé inicial do Tezuka, que não parou mais de fazer histórias. No geral, suas histórias eram curtas, com desenhos simples, mas que se conectavam com as crianças e adultos de forma cativante. Apesar do traço ser confundido com histórias infantis, os roteiros estavam longe de serem bobos e simples.  

Antes mesmo de 1950 o Tezuka não hesitava em criar histórias profundas e, muitas vezes, com finais tristes. Metropolis, por exemplo, é um mangá inspirado numa obra infantil do autor alemão Fritz Lang (livro já lançado no Brasil pela Aleph, inclusive). No entanto hoje ele é considerado um cult clássico que discute muitas questões sociais, apesar da polêmica que a obra carrega por ter participação de uma integralista nazista na sua criação.  

De toda forma, veremos críticas sutis e mensagens humanísticas em quase todas as histórias de Tezuka, mesmo com seu grande sucesso, Astro Boy. Atom, o menino-robô que teve que passar por várias situações entre robôs-humanos e salvar a humanidade mesmo sendo contestado pela sociedade. 

A profundidade de Astro Boy era tão clara que Naoki Urasawa, autor dos renomados títulos Monster e 20th Century boys, criou Pluto, uma versão própria do que ele via em Atom (Astro aqui no Brasil) e sua contradição de proteger seres humanos não sendo um humano. Por vezes Atom tinha que lutar e impedir outros robôs criados por cientistas geniosos, que também ajudaram a criar ele mesmo. 

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Atom de Urasawa e Atom de Tezuka

Enfim, todas essas obras de Tezuka ajudaram toda a sociedade a terem mais força, confiança e otimismo para reconstruírem um país totalmente destroçado pela guerra.

Cyborg 009

Na mesma linha do sentimento de Tezuka no pós-guerra, Shotaro Ishinomori criou Cyborg 009 em 1964, um dos maiores clássicos do Japão, junto com Devilman e Ashita no Joe. A própria sinopse e objetivo da história é falar sobre proteger a humanidade contra as guerras e o terrorismo. A citação da ONU, tratados e acordos de paz são constantemente citados, ao mesmo tempo em que aquela carga dramática típica dos anos pós-guerra tinha. 

O Joe é o nono ciborgue criado a fim de fazer experimentos científicos em seres humanos. O que começou apenas como um teste, a organização Black Ghost decidiu fazer disso algo mais sério e tecnológico, criando verdadeiras ameaças contra a humanidade. Os 9 ciborgues (8 homens e uma mulher) se rebelam contra essa organização e, juntos, combatem as temeridades, que os seres humanos são capazes de fazer, em busca da paz. 

Essa é a versão de 2001

Cyborg 009 teve várias produções na TV e no cinema, desde quando tínhamos produções em preto e branco. O último remake da franquia começou em 2016, chamado Cyborg 009 Call of Justice. Mas, também se destacam as séries de 1979 e de 2001. 

É claro que a linha é tênue na discussão sobre “proteger o mundo possuindo poderes super humanos”. Os quadrinhos de super heróis-americanos vivem expondo esse conflito em suas histórias. No entanto, assim como em X-men, muitas vezes a luta é pela sobrevivência de uma minoria. Não significa que os protagonistas acertam sempre e que são verdadeiros mocinhos e heróis, é bem mais complexo que isso.

Em Cyborg 009 esse conflito também pode ser abordado em diversos momentos, mas a ideia é que a Black Ghost quer oprimir os seres humanos de vez e criar o próprio governo controlador. Os ciborgues criados dão à organização o poder para isso acontecer: a repressão pelo medo e pela força. Então, combater essa vontade por controle e ódio é mais do que necessário. 

Ashita no Joe

Tudo que Ashita no Joe trouxe aos mangás no final da década de 1960 foi inovador e surpreendente. A história em si não fala de política da forma mais literal possível: governos, organizações do mal, guerras e sofrimento pós-guerra. Na verdade o mangá teve grande poder social nos adolescentes e adultos homens (principalmente) na época. 

Ashita no Joe é uma forma de mostrar a todos que a política pode significar muita coisa e pode impactar grupos de várias formas. Lançado em 1968 pela Shonen Magazine (editora Kodansha), o mangá teve seu verdadeiro boom 2 anos depois. A história estava na saga em que Joe luta com seu maior rival: Rikiishi. 

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Este é Toru Rikiishi.

Aos que nunca ouviram falar de Ashita no Joe, a história é sobre um garoto chamado Joe Yabuki que foi um adolescente delinquente e que acabou sendo mandado para um reformatório para cumprir pena por lesões corporais em brigas de rua. Por lá, após tentativa de fuga por parte do protagonista, Joe resolve entrar para uma espécie de clube de boxe para reformandos, na tentativa de reabilitar esses jovens na sociedade.

É no reformatório que Joe conhece Rikiishi e se torna o seu grande rival. Rikiishi sempre teve mais talento para boxe, mas o Joe era aquele protagonista que sempre se sacrificava, ia até seus limites para ganhar uma boa briga. Podemos até citar aqui Megablo Box, anime recente de boxe que se inspirou bastante em Ashita no Joe. 

Pois bem. A história comoveu toda a comunidade de leitores por um acontecimento. 

“Em 23 de março de 1970 centenas de pessoas – crianças, adolescentes e adultos – se reuniram na frente da sede da grande editora Kodansha em Tóquio para um funeral. Um monge budista prestou os devidos serviços, diante de um altar onde oferendas em incenso e flores foram feitas. Os presentes escutaram discursos acalorados em homenagem ao falecido, com lágrimas e expressões graves de luto sincero. A imprensa veio cobrir o acontecimento. No altar, conforme os costumes japoneses, estava um retrato do falecido com fitas negras. Era o boxeador Toru Rikiishi, um personagem fictício de mangá.” (SATO, 2007, p. 46)

Para muitos, essa atitude pareceu exagerada e algo que beira ao fanatismo. Mas essa história tem uma profundidade e motivações por trás, que explicam porque Ashita no Joe foi tão importante para uma geração inteira de japoneses. 

Ainda em 1968 a reconstrução do Japão era algo presente na vida e cotidiano dos japoneses. O luxo e conforto não existiam na época, coisa que os mais jovens japoneses, principalmente do século XXI já possuem. Era uma outra realidade social, histórica e cultural. Mesmo com as influências norte-americanas e abertura do mercado econômico, muito do sentimento dos jovens e jovens-adultos lembravam um Japão pré 2ª Guerra Mundial. 

“Embora o país já estivessse entrando em um período de franca prosperidade com máquinas de lavar roupa, TVs e automóveis tornando-se comuns nos lares nipônicos, e apesar de receberam na escola novos e democráticos ideais americanos, tais jovens ainda se identificavam mais com os valores de glorificação do sacrifício e do progresso obtido a duras penas, vigentes na sociedade japonesa antes da guerra.” (SATO, 2007, p. 47)

E como esse sentimento pode fazer sentido com a comoção em massa da morte de um personagem? Pois bem, Toru Rikiishi, já sendo um jogador profissional de boxe, e de sucesso, carregando cinturão de campeão em sua categoria, sempre quis desafiar Joe para uma luta oficial. 

Joe já estava lutando profissionalmente neste momento da história, e tinha uma carreira de sucesso razoável. Porém, a categoria de Joe era mais baixa por conta de seu peso. Já Toru sempre foi mais corpulento naturalmente, e estava na categoria acima, o que inviabilizava um confronto entre os dois rivais. 

Portanto, com muito sacrifício e treinos extenuantes e, por vezes, sangrentos e dolorosos, Toru fez de tudo para emagrecer para chegar à categoria de Joe. Para muitos, isso era impossível, mas Toru fez acontecer. 

“No dia da disputa, todos se espantam ao ver um anoréxico e quase irreconhecível Toru subir ao ringue. Ao longo de muitas páginas trava-se uma luta justa, mas violenta e dramática, em cujo clímax Joe é nocauteado e perde a luta. De repente, o inesperado: na hora em que Toru estende a mão para cumprimentar Joe, ele sofre uma parada cardíaca, vítima do próprio esforço excessivo, e cai morto.” (SATO, 2007, p, 46-47)

Socialmente e culturalmente falando, na época esse nível excessivo de esforço era glorificado pela maioria dos homens japoneses, que trabalhavam arduamente para reerguer o orgulho japonês e o seu país. Aqui não cabe levantar a questão do quanto isso foi prejudicial para os japoneses, mas que essas questões eram vigentes na sociedade deles, numa espécie de padrão de vida que era considerado “heróico”. 

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Joe Yabuki e a cultura do sacrifício.

Rosa de Versalhes

Já falamos de Rosa de Versalhes aqui no Chimichangas e de como ele foi um divisor de águas na indústria de mangás. Mas também vale a citação dessa grande obra que revolucionou o mercado. A história de Rosa de Versalhes é claramente política. Envolve questões mais românticas e dramáticas, mas em um contexto absolutamente político: França na época da Revolução Francesa. 

A personagem principal, Oscar, foi criada como menino por seu pai, que queria um filho homem, mas nunca teve. Em troca, “amaldiçoou” sua filha desde pequena a ser tratada e ensinada como homem. No Japão, a androginia e a cultura do cross-dresser é bem mais comum do que no Brasil, por exemplo. 

Desde antes da Princesa e o Cavaleiro, de Osamu Tezuka, em que a princesa também se vestia como homem e lutava e assim por diante, o Japão tinha a tradição da Ópera Takarazuka, em que o elenco das peças eram todos femininos, mesmo quando a história possuía papéis masculinos. Portanto, era comum que mulheres atuassem em papéis masculinos (o oposto também existe). 

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Rosa de Versalhes foi uma obra aclamadíssima na Ópera Takarazuka, inclusive.

Em Rosa de Versalhes (de 1972) o choque de uma personagem feminina ser tratada como homem não chocou, e na verdade teve uma grande aceitação do público. Mas, mais que isso, a história passou a discutir continuamente os papéis de gêneros e o papel da mulher na sociedade japonesa (mesmo que a história se passasse na França), dando entrada para o feminismo japonês no pós-guerra (pois é, ele existiu e a luta por igualdade de gênero não parou no século XXI). 

Oscar era uma mulher corajosa, que não foi obrigada a ser tratada como uma dama, utilizar vestidos e seguir padrões de comportamento e beleza da época. Ao contrário, ela era uma general do exército francês, e morreu na Revolução. Apaixonada por André, seu confidente e braço-direito, queria um relacionamento de igual pra igual, em que os dois tinham direitos iguais, apesar de todas as complicações sociais também da época. 

A animação de Rosa de Versalhes foi um marco na TV e inspirou animadores importantes, como Shingo Araki, que fez CDZ clássico.

Digamos que Rosa de Versalhes foi uma grande revolução feminina no Japão, e abriu portas para que mais mulheres passassem a atuar na indústria de quadrinhos, no teatro e, posteriormente, nas animações, buscando independência, liberdade e autonomia em um país tradicionalmente patriarcal. 

É considerado um dos mangás clássicos da indústria e foi publicado no Brasil pela JBC, em um formato Big (2 em 1), com 5 edições. 

Gen Pés Descalços

Nos primeiros anos de Shonen Jump as avaliações para aprovar as histórias eram diferentes de hoje. E isso permitiu que uma história densa e biográfica como Gen, Pés Descalços, de 1973, fosse publicada na maior revista para meninos do Japão hoje em dia. A história se passa no pós-bomba atômica contra Nagasaki e Hiroshima, com um garoto chamado Gen que sobreviveu aos horrores do fatídico dia. 

Perdendo seu pai e seus irmãos, Gen teve que salvar sua mãe e ajudá-la no parto pouco depois da bomba. As consequências devastadoras na região são retratadas com uma realidade dolorosa, mesmo que Gen seja corajoso e tente mostrar otimismo em vários momentos do mangá. Na história, Gen vive em Hiroshima e vai se aventurando nos arredores para sobreviver em um cenário pós-apocalíptico. 

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A bomba ocorre logo no primeiro volume, mas antes o autor dá um panorama de como era o sentimento dos japoneses na guerra.

O mangá foi publicado no Brasil pela editora Conrad, com um total de 10 volumes. O clássico da Shonen Jump também recebeu uma animação, que aqui no ocidente ainda é visto como uma mídia infantil (mesmo que passe longe disso). O autor Keiji Nakazawa contou sua história em mangá, para que acontecimentos como a bomba nuclear não aconteçam mais. 

Para isso, ao fim de todo volume, alguma figura japonesa comenta sobre os acontecimentos pós-bomba e os impactos da 2ª Guerra no Japão. O mangá não é simples de digerir e retrata bem como foram tempos difíceis durante a guerra e no pós-guerra, com um Japão pobre, totalmente desestruturado e sofrendo com as consequências da radiação e fome. 

Hayao Miyazaki e o discurso ecológico nos filmes do Studio Ghibli

Assim como Tezuka, Miyazaki veio de uma família de classe média alta de Tóquio, e nasceu em 1941 em condições altamente privilegiadas. Com isso, conseguiu fazer todas as etapas de seus estudos, fazendo economia e ciências políticas na Universidade de Gakushuin (particular de elite que os membros da família imperial estudavam). 

E ainda na faculdade ele percebeu o amor por produções infantis e animação. Indo atrás do sonho, em 1963 ele entrou como estagiário na Toei Animation, que estava reconstruindo o mercado de animê nas TVs.

Sendo um profissional engajado, experiente e já bastante antenado nos acontecimentos políticos, Miyazaki teve sua primeira oportunidade como diretor de uma animação em 1978, chamada “Mirai Shonen Conan” (Conan, o Garoto do Futuro). Vejam só a premissa da história: 

“[…] cujo enredo partia da premissa de que a Terra havia sido devastada por uma guerra nuclear em 2008. Vinte anos depois pequenas comunidades de sobreviventes habitam ilhas que já foram topos de montanhas, e Conan é um menino que vive com seu pai numa dessas ilhas, achando serem os únicos sobreviventes do planeta até resgatarem uma menina trazida pelas águas, fugitiva do reino de Indústria, que está tentando resgatar o uso de energias perigosas e poluentes para fins militares.” (SATO, 2007, p. 71).

Essa animação foi o pontapé para que Miyazaki criasse sua própria identidade nas animações, levando mensagens anti-guerra e ambientalistas nos anos seguintes. Não à toa, essas características são claramente associadas às animações como Nausicäa (mangá de 1982 e animação de 1984), Laputa – O Castelo no Céu (1986), Túmulo dos Vagalumes (1989) e Princesa Mononoke (1997), dos quais são altamente recomendados. Além disso, impossível esquecer do dizer “antes um porco do que um fascista” de Porco Rosso (1992), também dirigido e criado por Hayao Miyazaki.

Os aviões vermelhor e branco no céu são das obras de Porco Rosso e Nausicaa, respectivamente. Abaixo, do menino em cima de um cervo, é do filme Princesa Mononoke, e abaixo, dá pra ver a própria Mononoke e o inseto verde de olhos azuis originário de Nausicaa. Também há os irmãos de Túmulo dos Vagalumes e o robô de Laputa.

O nível de qualidade técnica das animações do diretor e do estúdio, em adição com as mensagens questionadoras e ecológicas, influenciaram uma série de diretores e outros animadores da indústria nos anos subsequentes. Podemos citar aqui Satoshi Kon, Hideaki Anno e até mesmo os autores mais “rebeldes” como Katsuhiro Otomo, Masamune Shirow e Mamoru Oshii .

Akira

Ao contrário de todas as criações na pegada mais otimista e com mensagens heróicas de salvar o meio ambiente, ter razões para existir e proteger a humanidade de catástrofes e guerras, Katsuhiro Otomo foi na via oposta disso. Ele foi a verdadeira antítese de Tezuka, Ishinomori e Miyazaki. 

Com um ar bem mais pessimista, crítico e sombrio sobre a humanidade, Otomo criou Akira em 1982. Já premiado por obras anteriores, Akira foi o masterpiece de Otomo e lhe rendeu a glória na indústria de mangás e animações. Diferente de outras obras nas revistas semanais/quinzenais, Otomo criou toda a história de Akira primeiro, ao invés de desenhar cada capítulo semanalmente ou com um curto prazo.

“Durante anos ele dedicou-se a uma enorme história de mais de 2 mil páginas: uma ficção científica apocalíptica que mostra um Japão corrupto e decadente, cuja juventude dedica-se à delinquência e às drogas e cujo governo investe todo o contingente militar para abafar manifestações públicas com violência e desenvolver estranhas armas humanas psíquicas – crianças com aparência de velhos cujos poderes mentais são capazes de destruir o mundo. A chave para a catástrofe está na figura de um menino adormecido dentro de uma cápsula de contenção chamado ‘Akira’.”

Otomo claramente queria discutir várias questões da sociedade com Akira. Após a 2ª Guerra, bombas e ataques não terminaram, e o ser humano continuou, até certo ponto, destruindo minorias, criando armas bélicas para a corrida espacial e tecnológica por conta da Guerra Fria e assim por diante. Diante dessa versão mais realística e catastrófica, Otomo via mais um futuro caótico do que de aprendizado do ser humano. 

O objeto Akira “possuiu” Tetsuo Shima, amigo de infância de Kaneda, que tenta salvá-lo de alguma forma.

Não apenas o mangá foi ambicioso, como a animação foi feita com impressionantes recursos de computação gráfica, em 1988. Akira se tornou um clássico no Japão e no mundo, influenciando o cinema ocidental como um todo. No Brasil, o filme oficial pode ser encontrado em diversos marketplaces, já que foi lançado pela Focus Flash Filmes. 

Já o mangá foi finalmente finalizado pela JBC, lançando os 6 volumes totalmente luxuosos e até melhor do que uma das edições norte-americanas. 

Ghost in the Shell

Criado em 1989 por Masamune Shirow, Ghost in the Shell é um dos clássicos da ficção científica, que continua a ter spin offs e uma série de histórias paralelas, como a mais recente GITS – The Human Algorithm, de 2019. No entanto, neste caso em específico, o mangá em si não foi o preponderante para o sucesso da franquia. 

A animação longa-metragem de 1995 que fez Ghost in the Shell se tornar um clássico e um ícone da ficção científica, misturando novos conceitos de robótica com política internacional. As informações básicas sobre o filme sempre são sobre as técnicas de animação e a inovação do tema “robótica” em filmes, que estava muito em voga na época. No entanto, o corpo central da história de GITS – Fantasma do Futuro é sobre política.

No início temos várias discussões sobre diplomacia, proteção em embaixadas e o entendimento do que é hackear os seres cibernéticos, ou humanos que possuem partes cibernéticas em seus corpos, pois há uma entidade chamada Puppetmaster utilizando esses corpos como fantoches. 

O discurso político é tão claro que a Motoko, protagonista e chefe do setor de “contenção”, faz parte do “Setor de Segurança Pública 9”. Ela está em constante conflito para ajustar os direitos da população com os interesses políticos, envolvendo até mesmo governantes de várias naturezas.

O filme original, lançado em 1995 e dirigido por Mamoru Oshii (que também trabalhou em Patlabor e junto com vários profissionais do Studio Ghibli) foi uma grande produção japonesa, que também conquistou o mundo ocidental, influenciando até mesmo Matrix. GITS aborda diferentes discursos filosóficos e resolução de problemas que influenciam toda uma cadeia da população e do próprio país.

Essa temática mais densa e filosófica segue todas as outras produções da franquia, tanto em mangá, quanto em animê. Fica aqui a recomendação de outras sequências de GITS: Individual 11 e The Laughing Man (ambos disponíveis na Prime Video, assim como o filme de 1995), que são filmes que deixam esse discurso político ainda mais latente e presente. 

Menções Honrosas

Muitas obras da década de 1960 até o fim dos anos 80 foram extremamente importantes para fundamentar modelos e padrões de histórias que impactaram todos os gêneros e demografias japonesas, como demonstrado neste próprio texto. Mas, ainda assim, na década de 1990 tivemos outras obras que merecem uma menção. 

Não quer dizer que os impactos dessas obras mencionadas aqui tiveram o mesmo peso que as anteriores descritas, e nem que o discurso político é mais claro. Na verdade, podemos dizer que é um pouco mais o oposto. Após os ânimos baixarem na Guerra Fria e vivermos uma época de relativa paz, as histórias passaram a diversificar mais os enredos. 

Não era mais tão claro lutar pela paz e para evitar guerras, mas a ideia era que tudo fosse mais visual, tanto do ponto de vista de lutas quanto os designs dos protagonistas. É bem nessa época que podemos citar Rurouni Kenshin, Yu Yu Hakusho, Inu Yasha, Dragon Ball, One Piece, Sailor Moon e até mesmo Cavaleiros do Zodíaco. 

CDZ foi criado em 1985, mas seu grande boom mundial ocorreu no fim da década e início de 1990, sendo bastante influente para os adultos que hoje têm entre 25-35 anos. Então, por ser o mais antigo, vale falarmos só um pouquinho dele. 

Saint Seiya – Os Cavaleiros dos Zodíaco

Masami Kurumada fez um sucesso internacional estrondoso com Cavaleiros do Zodíaco, a ponto de lhe render toda uma franquia. Há jogos, linhas de figures diversas até hoje, outros títulos de mangás, como Lost Canvas e Saintia Sho. Fora isso, ainda tivemos diferentes adaptações em animações, como a Lenda do Santuário, filme cinematográfico, e o atual remake da Netflix. 

No entanto, apesar de estarmos acostumados com as histórias paralelas e remakes de sagas da obra original, no final de década de 1980 Saint Seiya foi um marco para os jovens procurarem mais sobre astronomia e cultura grega, abrindo uma influência muito grande na busca por conhecimentos.

“O grande mérito de Kurumada, entretanto, foi o de tornar a mitologia grega um fenômeno popular, misturando o enredo e seus personagens a igualmente vasta mitologia oriental, dado a temas antigos uma capa de modernidade e criando uma salada capaz de fazer os simbologistas de plantão delirar, mas ainda suficientemente acessível às crianças.” (SATO, 2007, p. 43)

Mesmo que a história em si seja relativamente simples e direta aos olhos dos leitores, foi através da história que se popularizou muitas lendas mitológicas da Grécia, assim como figuras históricas da ficção, como Ares, Perseu, Orfeu, Medusa, Poseidon, Athena, Hades e outros. Mas, não foi apenas no campo mitológico/filosófico que a história teve seu grande marco. 

“Muitas das referências usadas por Kurumada já tinham sido vistas poucos anos antes por um vasto público através de outro grande sucesso da TV internacional. Em 1980 a série ‘Cosmos’, produzida e apresentada pelo astrônomo Carl Sagan, estreou simultaneamente nos Estados Unidos e Japão, atingindo logo de início uma audiência estimada em 140 milhões de espectadores. ‘Cosmos’ foi exibida em quase todo o mundo nos anos subsequentes, inclusive no Brasil, e tornou-se um cult ao popularizar a ciência e fazer de Sagan uma celebridade”. (SATO, 2007, p. 43)

Não é preciso muito para conseguir enxergar uma ligação direta entre ciência e CDZ, em uma época importante para difusão de informações sobre vida, astrofísica, biologia e um pouco de geografia. Ao menos foi uma porta direta para as pessoas não caírem nas conspirações mais retardadas possíveis, como Terra plana e que o homem não pisou na Lua. 

Esse foi Carl Sagan, que protagonizou Cosmos, série que teve seu remake protagonizado por Neil deGrasse Tyson

Sailor Moon

Seguindo a popularização de grupos de protagonistas protegendo uma figura “divina” ou “cósmica”, Sailor Moon surgiu em 1991 para atender o público feminino, lançado pela editora Kodansha. Com claras inspirações e influências em Rosa de Versalhes (CDZ também se baseou em design de Rosa de Versalhes), Sailor Moon também se tornou um sucesso estrondoso na década de 1990.

Naoko Takeuchi, ainda limitada a falar sobre certos assuntos na época, como transgeneridade e relacionamentos homossexuais, conseguiu expandir bem seu universo e abrir várias pautas sociais com sua obra. Junto com Rosa de Versalhes, foram obras importantíssimas para dar espaço e voz à minorias no Japão, que hoje criam histórias nas Comikets da vida e publicam obras em revistas japonesas com mais liberdade. 

E não apenas sobre pautas sobre gênero e  orientação sexual, mas também sobre liberdade feminina. Sailor Moon agradou um grande número de grupos, indo de meninas colegiais à mulheres adultas à procura de independência e trabalho numa época de prosperidade econômica. 

As Sailors Urano e Netuno são um casal lésbico. (Michiru e Haruka)

Mesmo que algumas sagas sejam datadas e não tão inclusivas nos dias de hoje, o mangá e o animê foram importantes degraus para falar mais abertamente sobre aceitação à diferentes tipos de pessoas, e também ressaltar qualidades altruístas, honestas e heróicas nos personagens gays e com clara alusão à transgeneridade. 

A luta LGBT+ sempre foi política e passou a ser muito forte no mundo ocidental mais ou menos na década de 1960. Fazer questão e desenvolver personagens da comunidade é uma forma de discurso político social, que foi presente em Sailor Moon.

One Piece

Lançado em 1997 na Shonen Jump, da Shueisha, One Piece ainda é uma das maiores influências em mangá shonen de aventura e luta para jovens. Mesmo lançado no fim da década de 1990, a história já recebia uma grande expectativa e teve seu grande boom a partir da edição 24, com recordes de vendas.

A história até então tinha acabado de finalizar a saga de Alabasta e iniciar um novo arco, com a entrada de Nico Robin para a tripulação. A edição 24 foi a segunda mais vendida do ano de 2002 da Shueisha, ficando atrás apenas da edição 25. 

A partir de então se tornou uma influência enorme para uma nova geração de mangakás e de roteirização de histórias. Por ter uma longevidade de respeito, passando por diferentes gerações, One Piece trouxe conceitos importantíssimos de empatia, sororidade e colaboração. 

Sabaody é um ponto da história com uma crítica bem clara à escravidão e desigualdade social.

Ao chegar em sagas mais complexas e conectadas com o universo, nos deparamos com mensagens claras sobre racismo (Ilhas dos Homens Peixes), autoritarismo e golpe de estado (Alabasta inteira), desigualdade social (Sabaody e Wano), proteção da história e de comunidades (Skypea e Ohara) entre tantas outras questões que são decididas e discutidas no campo político, filosófico e social. 

Conclusão

Todas essas importantes obras moldaram gerações de produtores, diretores, mangakás e autores de todas as mídias culturais. E impactaram também gerações da sociedade, desde o pós-guerra, até os anos de mais prosperidade econômica no Japão. O que importa aqui neste texto não é o que deve ser aprendido, absorvido e aplicado no nosso dia a dia, pois todas as histórias citadas há linhas de interpretações e nuances culturais e sociais. 

A ideia não é “cagar regra” do que deve ou não ser entendido dessas obras. O papel do texto é, junto com o conteúdo anterior (Política na indústria dos mangás e animês), entender que é impossível dissociar a política das obras culturais do entretenimento. Tudo da indústria foi moldado por questões políticas, assim como os autores de todas as mídias foram impactados por essa realidade e adicionaram esses conceitos em suas histórias.

Essa ligação entre política+entretenimento não surge apenas do ponto de vista histórico do Japão, mas também do ponto de vista das referências, reflexões e impactos que essas obras tiveram, tanto pelo enredo entregue, quanto das interpretações da sociedade perante ao conteúdo. Tudo se conecta, entende? 

Absorver mensagens e adicionar conhecimentos gerais (geográficos, históricos, científicos, culturais, econômicos e sociais) são pontos que andam junto com todas essas questões discutidas aqui, porém, vão além. Absorver mensagens e refletir sobre um problema levantado por uma obra requer a boa vontade do leitor ou telespectador de querer absorver e refletir. 

É fundamental entendermos também que o entretenimento foi e é tido como fuga, como relaxamento e diversão. E de fato também é tudo isso. Por vezes assistimos e lemos coisas pelo simples fato de desligarmos a mente dos problemas reais. Essa fuga pode impedir a reflexão, e talvez seja necessário revermos certas histórias para nos tocarmos que há sim mensagens importantes ali. 

No mais, é isto, espero que tenham se divertido lendo o texto. 

Fontes

¹: A história do Japão nunca foi muito estudada aqui no Brasil, apesar de sabermos de sua importância como bloco econômico com sua industrialização (modo Toyota e afins). No entanto, vale a leitura de alguns textos que ajudam a gente entender como era o pós-guerra:

Revisionismo histórico japonês -> https://rukhnoteikoku.com/2020/02/10/vamos-problematizar-a-influencia-do-revisionismo-historico-japones-nos-animes-e-mangas-a-controversia-de-boku-no-hero-academia-e-apenas-um-reflexo-de-um-problema-muito-maior/

Segurança e Politica Externa do Japão no Pós Segunda Guerra Mundial -> Livro de Paulo Daniel Watanabe

Corações Sujos -> Livro de Fernando Morais

Relações hierárquicas do Japão contemporâneo: um estudo da consciência de hierarquia na sociedade japonesa -> https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-28082012-123242/publico/2012_WataruKikuchi_VRev.pdf (não exatamente do pós-guerra, mas dá uma dimensão interessante sobre costumes, cultura e hábitos sociais).

Citações usadas: JAPOP – O Poder da Cultura Pop Japonesa –> Cristiane A. Sato (livro em comemoração aos 100 anos de imigração japonesa no Brasil)

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