Dororo é uma obra famosa, de um autor famoso. Embora seja uma história conhecida por muitos, há também um outro lado que ainda não foi apresentado ao mangá, bem como ao seu criador. Dororo é um mangá criado por Osamu Tezuka em 1967. 

A obra ganhou uma versão em anime em 1969 e também um adaptação em live-action lançada em 2007. Foi então que, ano passado (2019), Dororo foi readaptado para anime e encontra-se disponível no Prime Video da Amazon.

A história é um gênero do terror e se passa em um período bastante conturbado do Japão, marcado por guerras constantes, conhecido historicamente como Período Sengoku. Em troca de poder e perseverança, Daigo Kagemitsu fez um pacto com 48 demônios e, em troca, ofertou a cada demônio um pedaço do corpo de seu filho, que poderiam ser tomados no momento de seu nascimento.

Personagem Daigo Kagemitsu fazendo um pacto com os demônios
Daigo Kagemitsu ainda jovem, fazendo um pacto com os demônios.

Por algum motivo, o recém-nascido não perdeu sua vida após ter suas partes roubadas por demônios. Ao invés disso, nasceu com má formação, sem membros, traços faciais e órgãos. Mesmo tendo sobrevivido à maldição, na condição em que se encontrava, o bebê certamente estava condenado à morte. 

Sem querer pagar pra ver, Daigo Kagemitsu pede que a parteira dê um fim na criança, ignorando a vontade contrária de sua esposa, mãe do recém-nascido. Ao invés de ceifar definitivamente a vida do bebê, a parteira o colocou dentro de uma canoa e o deixou à própria sorte.

A criança amaldiçoada sobreviveu, foi encontrada e criada pelo ex-samurai e artesão de próteses, Jukai. Este lhe deu, antes de tudo, um nome: Hyakkimaru. Em seguida, lhe deu pernas de madeira e lâminas presas no lugar de seus braços, para que pudesse se proteger. Após derrotar um demônio, Hyakkimaru recebe de volta uma parte de seu corpo. Em seguida, outra parte. E outra.

Hyakkimaru bebê, sendo colocado em uma canoa à própria sorte.

Logo ficou claro que ao derrotar determinados demônios, Hyakkimaru conseguiria reaver suas partes que lhe haviam sido tomadas no momento de seu nascimento. Contudo, quanto mais partes o ronin recupera, mais fraco se torna o pacto entre Daigo Kagemitsu e os demônios.

Durante sua jornada para recuperar seu corpo, Hyakkimaru encontra com Dororo, uma garotinha que vive andando de um lugar para o outro, roubando alguns trocados para tentar sobreviver. Após ser salva por Hyakkimaru, Dororo passa a viajar ao lado do ronin e os dois não demoram a formar um forte laço de amizade.

Hyakkimaru e Dororo

Muitos assuntos e discussões podem ser tirados da história de Dororo para serem debatidos e expostos, mas uma das coisas que mais me chamaram a atenção foi a constante evidência com que a maternidade é mostrada. 

Salvo algumas exceções, a figura masculina, sobretudo paterna, aparece ligada à crueldade, atitudes duvidosas e descaso. Em contrapartida, as mulheres não apenas são figuras fortes, determinadas e imponentes, como a maternidade e o quanto ela é valiosa aparece recorrentemente, de várias formas diferentes. Tendo reparado nisso, achei por bem reforçar essa questão nesse texto.

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AVISO: Muitos SPOILERS daqui pra frente!
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A estátua sem cabeça

Bem, se por um lado existem demônios no universo de Dororo, é seguro dizer que alguma santidade também se faz presente em algum nível. No momento do nascimento de Hyakkimaru, suas partes foram tomadas pelos demônios, exceto uma. Um raio cai e adentra o quarto onde o parto estava sendo realizado. O raio atinge a estátua de uma santa e lhe arranca a cabeça. Em troca disso, Hyakkimaru sobrevive.

Por algum motivo, de algum jeito, aquela estátua e a santidade a quem ela representa foram capazes de impedir que um último demônio obtivesse a sua parte do pacto. Essa estátua pertence à deusa da misericórdia, Kuan Yin. Mesmo condenado a um destino tão cruel, Hyakkimaru foi abençoado pela compaixão da deusa, dando a ele a primeira oportunidade de tentar sobreviver e contrariar seu destino.

A estátua continua aparecendo durante o anime, muitas vezes na companhia de Nui No Kata, mãe de Hyakkimaru, que passa a maior parte de seu tempo rezando para o filho perdido (falaremos sobre ela em seguida). Em outras ocasiões, a estátua aparece em segundo plano, em evidência no cenário.

Comparativo entre a estátua sem cabeça e a deusa da misericórdia
A estátua sem cabeça e a deusa Kuan Yin

A deusa da misericórdia age mediante sua benevolência e sensibilidade com a situação a qual uma vida que ainda nem havia chegado ao mundo tinha sido submetida. Um ato tão baixo e vil por parte do próprio progenitor. Em toda sua clemência, a deusa abraça aquela pobre alma e – maternalmente – a protege do golpe final. 

Por que “maternalmente”? Ora, é mais que comum que as santidades e demais entidades religiosas sejam tratadas como os criadores, pais e mães do universo e de todos nós. Em vista da situação, onde a mãe biológica de Hyakkimaru não teve oportunidade alguma de lutar pela vida de seu filho, foi necessário que uma benção divina interviesse e fizesse isso por ela. Pode-se dizer que foi uma dádiva obtida por conta da forte devoção que Nui sempre teve pela deusa da misericórdia.

A mãe de Hyakkimaru

Antes de mais nada, vamos contextualizar: estamos falando de uma história que se passa num Japão antigo, em meio à uma situação instável de guerras e conflitos, onde a soberania masculina é indubitavelmente predominante. Ser mulher, por si só, já significava estar em perigo constante. A submissão era convencionada e seguida pela grande maioria (havendo exceções, como em toda regra). Era obedecer para sobreviver, basicamente. 

Sabendo disso, podemos agora retomar para o nascimento de Hyakkimaru. Após dar à luz em um parto normal, facilmente sem metade das técnicas e medicamentos para reduzir as dores da gestante, Nui tem a oportunidade de segurar seu filho nos braços para descobrir que este nasceu sem a maior parte de seus membros e órgãos. Ainda assim, ela demonstra o natural e esperado amor incondicional que só uma verdadeira mãe pode ter.

Nui segurando seu bebê recém-nascido

Infelizmente, Nui logo é obrigada a se despedir de seu filho. Daigo exige que a criança seja levada e eliminada o quanto antes, por se tratar de uma carcaça, um infeliz que não deve existir. Mesmo debilitada pelos esforços naturais que um parto causa em uma mulher, Nui reluta, insiste que irá criar e amar aquela criança e pede várias vezes para que não os separem. Seus esforços claramente não surtem efeito.

No decorrer da história, Nui engravida novamente, dessa vez para dar a luz ao herdeiro que, segundo Daigo, será o seu grande sucessor, cujas conquistas serão infinitas. Com a chegada de seu segundo filho, inconscientemente, Nui se divide em duas mães: a mãe de Hyakkimaru e a mãe de Tahomaru

Sobre isso, consumida pela culpa e o pesar, Nui passa a maior parte de seu tempo dentro de seu quarto, rezando pelo filho perdido, sempre para a estátua sem cabeça.

Nui orando para a estátua sem cabeça

Depois de descobrir que seu bebê estava vivo e havia se tornado um forte ronin, Nui lidou com sentimentos conflitantes, mas conseguiu se redimir a tempo de poder pedir perdão e demonstrar um pouco do seu amor por Hyakkimaru.

A história gira constantemente em torno desse relacionamento interrompido entre mãe e filho, ao mesmo tempo que conta a história de um segundo filho que faz de tudo para chamar a atenção de sua mãe, mas a recebe pela metade. Vamos falar sobre a mãe de Tahomaru.

A mãe de Tahomaru 

Nós conhecemos toda a história e isso ajuda bastante a entender o motivo pelo qual Nui passa tanto tempo orando para a estátua sem cabeça. Mas, seu segundo filho nasceu e cresceu em meio à um ambiente familiar marcado por segredos e histórias pela metade. Tahomaru sempre soube que alguma coisa estava sendo escondida por seus pais e ao mesmo tempo nunca entendeu o por que de sua mãe estar sempre cabisbaixa e desatenta com tudo, mas mais especialmente, com ele. 

Nui foi forçada a ser uma mãe ausente para Hyakkimaru e acabou sendo também ausente para Tahomaru, mesmo estando bem ao lado dele. Passar tanto tempo enclausurada em seu quarto rezando fez com que uma distância emocional surgisse entre ela e Tahomaru. Quanto mais tempo orando pelo filho perdido, menos tempo participando do crescimento do filho presente. 

Tahomaru sendo erguido por Daigo Kagemitsu, chateado por não ter a atenção de sua mãe
Tahomaru visivelmente chateado por não conseguir chamar a atenção de sua mãe.

Embora Nui pudesse estar cega pelo sentimento de culpa e luto, essa distância foi fortemente notada e sentida por Tahomaru, que cresceu tentando de todas as formas chamar a atenção de sua mãe. Quando descobre a verdade, Tahomaru também é tomado por uma onda de sentimentos confusos, mas sua compreensão de tudo o leva para o caminho oposto ao seguido por sua mãe.

Munido da justificativa de que a existência de Hyakkimaru representava um perigo para seu povo, Tahomaru o encarou como uma ameaça e um inimigo a ser derrotado. É claro que esse não foi o único motivo que fomentou o sentimento negativo nele. Tinha um outro motivo, um que muito o incomodava. Durante todo o tempo em que Tahomaru fazia esforços para ser notado pela mãe, ela esteve concentrando seus pensamentos e sentimentos orando por Hyakkimaru, mesmo sem saber que ele estava vivo. 

Por que ela dava tanta atenção para um filho que nem deveria existir e, ao mesmo tempo, não reparava nas conquistas daquele que teoricamente nasceu para ser grandioso em tudo que faria? A inveja tomou conta de Tahomaru e somada à influência de Daigo na mente do garoto, fez nutrir um ódio tão grande que o levou a seguir os passos do pai e recorrer aos demônios para tentar eliminar o próprio irmão.

Hyakkimaru e Tahomaru lutando

O pai de Hyakkimaru

Não, eu não vou falar do homem que divide laços sanguíneos com Hyakkimaru. Vou falar do verdadeiro pai dele, quem o resgatou, criou e amou exatamente como ele era.

No passado, Jukai torturava e crucificava pessoas a mando de Senhor Shiba, seu antigo líder. Chegou o dia em que Jukai caiu em si e finalmente assumiu que não gostava do que fazia. A dor de ter causado tanto mal às outras pessoas levaram Jukai a tentar se suicidar. 

Depois de ter sobrevivido à tentativa de suicídio, Jukai decidiu dedicar sua vida a cuidar de feridos e criar próteses para aqueles que haviam perdido um membro ou vários. Porém por mais bem que fizesse, Jukai sentia que seus pecados jamais seriam perdoados.

Jukai esculpindo uma prótese

Um dia seu destino cruzou com o de um bebê sem olhos, sem pele, membros e muito mais. Jukai o acolheu, lhe deu um nome e criou como se seu filho fosse. Seu impacto e importância no desenvolvimento de Hyakkimaru são vitais para fortalecer a determinação e resiliência deste. Foi com ele que o ronin aprendeu tudo o que precisava para seguir estrada sozinho quando estivesse pronto para cumprir seu destino.

Pode estar parecendo estranho que eu esteja falando de um personagem que representa o papel de figura paterna para Hyakkimaru, e é natural que pareça. Acontece que eu e você sabemos o que é ser um pai e o que é ser uma mãe. Sabemos também que é assim que normalmente se chama alguém que preenche esses requisitos. Pois é, mas Hyakkimaru não.

Jukai e Hyakkimaru

Para o ronin, ainda faltavam muitas coisas a serem aprendidas sobre a vida e as pessoas. O conceito de mãe e pai era uma delas. Durante boa parte da história Hyakkimaru lida de forma um pouco confusa com Jukai, por não saber como se referir à ele, do que chamá-lo. Da mesma forma, durante sua jornada ele conhece a história de Dororo e como a mãe dela foi importante para a sobrevivência e a criação dela. 

Foi então que Hyakkimaru aos poucos começou a tomar conhecimento do conceito de maternidade e apenas dele. Não existe um exemplo de figura paterna ao qual ele possa se basear para associar à como Jukai o criou. Mesmo o exemplo paterno que Dororo tem para compartilhar não se encaixava tão bem ao que Jukai representa para ele.

Por fim, em um futuro reencontro com Jukai, Hyakkimaru o chama de “mãe”, levando-o às lágrimas por finalmente saber como o garoto que ele criou e tem como filho o vê. Não existe incômodo nem confusão na reação de Jukai ao ser chamado de mãe. Pelo contrário, sua alegria plena apenas confirma o quão poderoso é ser associado à uma figura materna.

A mãe de Dororo

Dororo nasceu em meio a um grupo de bandidos liderados por seu pai. Hibukuro foi a exceção em meio à uma predominância masculina tóxica naquela época. Um pai sempre zeloso e preocupado não apenas com sua família, mas também com seu grupo. 

Após a traição de um membro de seu grupo, Dororo e seus pais são forçados a tentar sobreviver dia após dia, passando por situações terríveis. Encurralados em uma situação de perigo, Hibukuro sacrifica a própria vida para garantir que sua companheira Ojiya e Dororo pudessem escapar. Desse momento em diante, Ojiya colocou toda a responsabilidade nas costas e dedicou sua vida para salvar Dororo.

Dororo e sua mãe, queimando a mão para segurar a sopa para Dororo comer
Ojiya queima as mãos enquanto segura uma sopa quente para Dororo poder comer.

A situação piorou consideravelmente depois que Hibukuro morreu. Conseguir comida ficou mais difícil, cada vez mais difícil. Ojiya começou a deixar de comer para que Dororo não passasse fome e por causa disso morreu devido à desnutrição e a fome. Perder o pai e em seguida a mãe forçou Dororo a ter que aprender a sobreviver sozinha sendo apenas uma criança. Isso fez dela uma garota durona e esperta, mas a carência maternal ainda residia forte em seu interior, conforme falarei em breve.

Dororo e a figura materna

Como eu disse anteriormente, Dororo precisou aprender a sobreviver sozinha depois de perder os pais e ela se saiu muito bem nisso. Mas por trás da personalidade gentil e ao mesmo tempo durona que ela construiu ainda existia uma carência por amor fraternal, principalmente o materno. Isso tanto é verdade que vez ou outra Dororo se deixou levar pelo acalento de mulheres gentis que a acolheram e – sem perceber – as chamou de “mãe” enquanto se dirigia a elas.

Isso aconteceu primeiro em uma oportunidade em que Dororo e Hyakkimaru foram recebidos por uma doce e gentil mulher, que os acolheu e tratou com carinho e zelo. Sem se dar conta, Dororo a chamou de mãe, por sentir um calor afetivo levemente próximo ao que ela sentia com sua mãe. Uma pena que esse relacionamento não tenha terminado muito bem.

Dororo volta a sentir o calor materno novamente, dessa vez com a própria mãe biológica de Hyakkimaru. Ser abraçada e gentilmente tratada por uma mãe de verdade trouxe à tona a carência de Dororo, que mais uma vez baixa sua guarda e chama Nui de “mãe”.

Dororo e Nui

A história é muito feliz por mostrar esse traço na personalidade de Dororo ao longo dos episódios. Enquanto acompanhamos as aventuras dela com Hyakkimaru é bem fácil esquecer que ela é apenas uma criança e, como tal, certamente tem sentimentos que uma criança deve ter. Esses momentos de fragilidade de Dororo são muito importantes para nos fazer lembrar que apesar de tudo, ela é uma criança e sente muita falta da mãe.

Família equina

Você não leu errado. Um dos exemplos mais fortes da ferocidade com que uma mãe pode proteger um filho em perigo é mostrado no relacionamento entre uma égua e a sua cria. 

Para reforçar o exército de Daigo Kagemitsu, vários cavalos e éguas são tomados das pessoas. Por esse motivo, uma égua é separada à força de seu filhote e forçada a carregar um dos samurais de Kagemitsu. Novamente, o anime mostra o sofrimento prolongado do cavalinho, sentindo falta da presença de sua mãe. 

Em uma batalha, a égua é abatida, mas retorna como se fosse uma espécie de reencarnação temporária, ou como você preferir interpretar. O filhote sente a forte presença da mãe e dispara em direção ao seu encontro. Esse reencontro acontece, mas o cavalinho acaba se colocando em uma situação de grave perigo.

Mamãe égua e seu filhote

Ver a cria em perigo aciona um verdadeiro modo berserker na égua, que luta com tudo o que tem para proteger seu filhote, demonstrando da forma mais básica e animalesca possível o que é ser mãe.

Basicamente, a todo momento Dororo traz elementos que remontam à importância que a figura materna tem na vida de qualquer um. Seja para amar um filho mesmo tendo sido afastada dele; seja passando fome para garantir que a filha tenha o que comer; seja mostrando as consequências negativas em alguém cuja mãe esteve ausente durante o crescimento ou então quando a maternidade é praticada não necessariamente por uma mulher. 

Às vezes sutilmente, outras nem tanto, Dororo me passou uma forte mensagem a respeito desse assunto e ficou muito marcado em mim, sendo provavelmente uma das coisas que vou me lembrar para sempre quando pensar nessa obra. Já deu um abraço na sua mãe hoje? Nos vemos na próxima aventura!

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