Estrutura é um dos temas que mais são debatidos no momento de construir ou analisar um roteiro. Desse modo, uma das estruturas de roteiro mais conhecidas é a estrutura de três atos de Syd Field. A estrutura é muito utilizada em livros e filmes, mas podemos analisar também em animes, como em Kiznaiver, anime que divide muito bem sua história com pontos de tensão bem distribuídos.

Kiznaiver é um anime de 2016 produzido pelo estúdio Trigger, escrito por Mari Okada, autora de obras como Ano Hana e Hanasaku Iroha. A história acompanha sete alunos do ensino médio da cidade futurista de Sugomori. Eles são escolhidos para fazer parte de um programa experimental com o intuito de estabelecer a paz mundial. Assim, o objetivo do programa é fazer as pessoas criarem laços, forçando-as compartilhar a dor uns dos outros. O anime contou com 12 episódios e foi distribuído pela Crunchyroll.

Dessa forma, a maior proposta do anime é como os problemas vão surgindo por conta das interações dos personagens, já que compartilhar a dor um do outro pode permitir que eles construam laços, mesmo que essas pessoas tenham personalidades diferentes. Vamos então acompanhar a história desses 7 personagens e as crises que eles vão passar por conta do sistema Kizuna. Portanto, ao analisar a narrativa de Kiznaiver, podemos entender como foi feito a distribuição dos pontos de tensão da história para ter uma narrativa muito bem estruturada. 

A estrutura de três atos

Estrutura criada pelo roteirista Syd Field consiste em dividir a história em início, meio e fim. Para entender mais sobre a importância de estruturar uma história, Robert McKee, professor de escrita criativa, comenta em seu  livro “Story” que estrutura é uma seleção de eventos da história da vida dos personagens. Esses eventos são compostos por uma sequência estratégica para estimular emoções específicas, expressando um ponto de vista específico. 

No entanto, a estrutura de três atos não é a única fórmula de sucesso para escrever um roteiro. Muitas histórias necessariamente não seguem esta fórmula, rompendo essa estrutura, criando uma narrativa não-convencional ou até trabalhando com outras estruturas para a criação de roteiros, como a estrutura Beat by Beat do roteirista Blake Snyder que já analisei aqui no Chimichangas. Além disso, por ser uma das estruturas mais conhecidas e comentadas, muitas vezes, histórias são analisadas com a estrutura de três atos de forma errônea. 

Assim sendo, em Kiznaiver, podemos analisar como Mari Okada estruturou a história do anime. Primeiramente, temos a introdução da história e seus personagens, até o primeiro ponto de virada, quando somos introduzidos ao sistema Kizuna ou seja, o fim do primeiro ato. Começamos a acompanhar então os personagens em suas “novas vidas”, tendo seus desenvolvimentos, até o outro ponto de virada, que trará o começo do terceiro ato, para trazer a conclusão a história. Dessa forma, vamos analisar especificamente os três atos em Kiznaiver e como os elementos são estruturados. 

Estrutura de roteiro em Kiznaiver

Ato 1: Apresentação dos personagens e do conflito

Sonozaki Noriko

Geralmente no primeiro ato das narrativas, temos a apresentação dos personagens e o universo que eles vivem. Muitas vezes, os personagens no início não tem nenhum objetivo claro ou importante. Assim, eles estão apenas vivendo em sua rotina comum, como acontece com os personagens de Kiznaiver. No entanto, tudo isso irá mudar quando os personagens viverem o primeiro conflito na história. 

Em Kiznaiver, começamos o primeiro episódio com a apresentação do personagem Katsuhira, o protagonista do anime. É mostrado no começo, quando dois adolescentes batem nele, que o personagem não sente dor e nem consegue demonstrar sentimentos. Também é mostrado indiretamente que sua amiga de infância Chidori possui sentimentos pelo garoto. Depois, Katsuhira conhece Sonozaki, a garota por trás do experimento Kizuna. Na conversa, Sonozaki comenta sobre as personalidades de cada personagem para os apresentarem: Katsuhira, “o imbecil”; Yuta, “o normalzão astuto”; Chidori, “a moralista irritante”; Maki, “a toda poderosa”; Nico, “a excêntrica”; Tenga, “o delinquente musculoso” e o personagem que aparece mais tarde, Yoshiharu, “o imoral”.   

No entanto, conhecemos melhor os personagens quando Sonozaki os juntam em um prédio antigo. A garota apresenta o sistema Kizuna e suas regras para eles, sendo um ponto importante para o roteiro, pois é aqui que o espectador vai saber o que vai ser trabalhado daqui para frente. A proposta então do sistema é fazer os personagens se conectarem pelas suas dores e sentimentos para criarem laços.  

O primeiro momento de tensão acontece quando os personagens são separados de Katsuhira e Sonozaki propõe que eles se conheça melhor, contando um segredo de cada um. Nesse momento, também é mostrado que os personagens possuem dores compartilhadas, ou seja, se um personagem se machuca, além dele, os outros personagens sentem as dores. 

A cicatriz do sistema Kizuna

O primeiro ato do anime acaba quando todos conseguem compartilharem seus segredos e saírem vivos do prédio que está sendo quase demolido. Começamos o segundo ato então sabendo quem são os personagens e o conflito que será mostrado durante o anime. 

Ato 2: Confrontação

No segundo ato, os personagens adentram em um novo mundo. No caso de Kiznaiver, o que muda são as rotinas dos personagens, onde além de compartilharem as dores, eles vão ter que conviver juntos, o que chega a ser difícil, já que a grande maioria deles não possuem amigos, sendo a primeira vez deles experimentarem esse tipo de relação amigável.  

Assim, nesse momento de confrontação, os personagens vão ter que conviver com o sistema Kizuna e enfrentar os problemas que Sonozaki apresenta para eles. Nesse caso, podemos dizer que esses problemas são os subplots, as tramas paralelas.  Portanto, nesses conflitos é mostrado, por exemplo, eles conhecendo Yoshiharu, o sétimo kiznaiver, ou eles viajando e entendendo mais sobre os sentimentos negativos e como isso pode influenciar nas dores que eles sentem. Conhecemos mais sobre o passado de Maki e como eles ajudam ela superar esse problema… 

Portanto, esses conflitos aparecem para os personagens ficarem mais próximos e criarem laços, o que é a proposta do sistema de Sonozaki. No entanto, esses conflitos vão ficando mais arriscados para as relações dos personagens. Assim, quanto mais os personagens permaneçam unidos, mais eles vão entender os sentimentos um do outro, podendo causar problemas. Dessa forma, os personagens vão sentir a tristeza dos amigos, como também a amargura, o sentimento de amor e inclusive os ciúmes.

A virada de ato é dada no final do episódio 9. Os personagens são presos na escola durante uma grande tempestade. Yamada, o professor deles, e um dos participantes do sistema Kizuna, estrategicamente, separa seus alunos de um jeito que cause confusões internas entre eles. Dando o exemplo de Nico e Tenga, a garota possui sentimentos pelo valentão portanto, quando os dois ficam sozinhos, Nico e os outros personagens sentem uma sensação de aconchego. No entanto, quando Nico observa Tenga defendendo Chidori, a garota que ele gosta, Nico sente ciúmes, o que afeta os outros personagens. O mesmo acontece em relação a Chidori, ao ver Katsuhira e Sonozaki juntos. 

Assim, quase na virada do ato, os personagens se confrontam por conta de seus sentimentos. Nesse momento, a conexão entre eles é tão poderosa que eles conseguem escutar os desejos internos dos outros, como se estivessem lendo mentes. Por mais que eles gritassem palavras como “deveríamos ficar juntos”, ou “somos amigos”, por dentro, era transmitido mensagens diferentes. Assim, aquela dor é tão grande que eles desmaiam. O ato acaba quando a tempestade termina e eles vão embora, cada um seguindo seu caminho, sozinhos.

Ato 3: A resolução e aprendizados

Por fim, o último ato é quando os personagens não possuem mais seus sistemas Kizunas e estão separados. Eles acreditam que se separando, podem evitar de sentir dores por conta de suas emoções negativas. No entanto, ao voltarem as aulas, eles começam a perceber que não é bem assim. Eles sentem a vontade de se conectarem, mesmo sem o sistema Kizuna. É mostrando também mais afundo o passado de Katsuhira e de Sonozaki, onde finalmente é demonstrado momentos cruciais sobre os sentimentos perdidos de Katsuhira.  

Passado de Katsuhira e Sonozaki

No entanto, o ponto principal do terceiro ato é o ponto mais dramático da trama, onde o confronto final ocorre. Quando os personagens se entendem, Sonozaki move seu plano, tentando conectar todos os cidadãos da cidade de Sugomori. É nesse momento que, ao enfrentarem Sonozaki, os personagens vão mostrar a transformação que eles passaram diante da história toda. Assim, na cena da ponte, os personagens demonstram essas mudanças, inclusive Katsuhira, que diz que deseja conectar com todos, mesmo não tendo sentimentos. 

Quando é resolvido o grande conflito do anime, vamos acompanhar os últimos momentos da história, onde outros elementos da linha narrativa se encerram. É mostrado então as relações de cada personagem e como cada um ficou: Chidori começa a pensar sobre os sentimentos de Tenga, enquanto Nico parece que aos poucos começa a desistir do valentão, tendo o apoio de Yoshiharu. Maki tenta, aos poucos, corresponder os sentimentos de Yuta, enquanto Sonozaki e Katsuhira parecem estar começando um relacionamento. Katsuhira também consegue recuperar seus sentimentos e a possibilidade de sentir dor. No entanto, a maior questão que o anime deixa é que todos ali agora são amigos, mesmo sem o sistema Kizuna para conectar eles.

A mensagem de Kiznaiver

O anime Kiznaiver é mais uma obra que propõe trabalhar com a importância das relações dos personagens. Os personagens, com personalidades fortes mas completamente diferentes, são juntados por conta de um sistema sobrenatural. Essa proposta, junto com os elementos que são trazidos durante a trama, é justamente para influenciar a construção de personagens e suas relações durante a narrativa. 

Quanto mais as relações destes personagens vão se fortalecendo, mais problemas o sistema Kizuna apresenta para eles, onde são expostos a cada evento que eles confrontam, mostrando os problemas e sentimentos de cada um ali. Essa proposta de conhecer mais afundo estes personagens faz com que a pessoa que estiver assistindo crie empatia, criando a ideia de humanidade para esses personagens. 

O sistema Kizuna então, por mais que faça esses personagens criarem relações, os mesmos percebem que eles não precisam desse sistema para se conectarem. Eles entendem a importância de criarem laços, de serem amigos, sem precisarem compartilhar dores e sentimentos por esse processo, e sim, eles podem aprender a confiarem um no outro aos poucos, para conseguirem compartilharem o que sentem de uma forma natural. 

Portanto, Mari Okada em Kiznaiver consegue trabalhar muito bem com os pontos de tensão no anime. Cada conflito tem seu momento certo para acontecer, de uma forma bem estruturada para a construção dos personagens e suas relações. 

Topo
%d blogueiros gostam disto: