Vira e mexe o assunto pirataria volta à tona no cenário otaku, e de várias maneiras. A pirataria de fato envolve diversas partes, então é comum vermos discussões acaloradas defendendo fansubs, scanlations, pirataria generalizada, esquecendo o outro lado da moeda: direitos autorais, autores e empresas oficiais. 

Então, antes de mais nada, neste texto, vamos contextualizar o que é pirataria, como ela começou, os grupos responsáveis pela quebra de direitos autorais, entre outros detalhes apenas referente aos piratas. 

Como o cenário otaku está relacionado à indústria de animê e mangá, muitas empresas acabam se envolvendo nessa conversa de pirataria. Não se trata apenas da editora do mangá ou da licenciante do animê (como as plataformas de streaming). 

A pirataria também exerce mudanças para as empresas licenciantes de marcas, o que chamamos de direitos autorais. Então, como exemplo, temos a Sato Company, ou mesmo a Angelotti. 

A Sato é uma empresa com direitos de streaming, enquanto a Angelotti é uma empresa com direitos de merchandising. 

Alguns produtos estão sim relacionados aos animês, trabalhando na criação de box de DVDs, legendagem e dublagem, caso necessário. E também há empresas que detém o direito de criar camisetas oficiais e qualquer outro utensílio ou produto decorativo daquela marca. 

Do outro lado temos os fansubs e scanlations, que existem há muito mais tempo do que imaginamos na cultura pop. De forma simplificada e objetiva, são grupos de fãs, que não possuem nenhum propósito comercial e lucrativo, e sim de espalhar e divulgar a obra para mais pessoas.

Bom, essa é a realidade da situação da pirataria otaku, resumida ao máximo possível para que você, leitor, possa entender de onde esse texto vai partir. Primeiro vamos contextualizar o histórico da pirataria.

Depois vamos falar sobre como a pirataria dos dias de hoje (sim, porque 10 anos atrás era diferente) influencia e atinge as empresas oficiais, e quais as formas que o mercado oficial pode melhorar e trazer formatos mais acessíveis a todos. E, óbvio, como sempre, todas as considerações pertinentes ao assunto. 

Contexto histórico importa

A pirataria não surgiu do nada e sem motivos, por isso é importante entender como alguns acontecimentos históricos influenciaram para que grupos procurassem formas alternativas de consumir cultura. 

Exatamente visando esse tipo de assunto, o Chimichangas trouxe mais outros 2 textos que servem como base para esse texto de pirataria. E por quê? 

Simples: só falar de história tomaria boa parte desse texto aqui. A ideia é falar de como a pirataria funciona, por que ela existe e como ela ainda é forte e presente nos dias de hoje. Portanto, vamos resumir a história. 

O primeiro texto fundamental é sobre a história da indústria dos mangás e animes. Falamos disso quando mostramos que a história está de mãos dadas com a política, influenciando sim em como autores e artistas se expressaram no pós-guerra. 

O segundo é sobre o papel do fandom no consumo da cultura pop japonesa. Esse segundo é ainda mais importante, pois é possível entender como os grupos se organizaram para interagir e se relacionar não só entre si, mas com as empresas. O texto fala de Japão e Ocidente.

Resumidamente: a cultura pop japonesa renasceu no pós-guerra, lá em 1946 alguns artistas já voltaram a criar quadrinhos sem a censura do Japão imperialista. Em 50 tivemos a chegada de Osamu Tezuka, que revolucionou o mercado e mostrou que era possível criar não só quadrinhos, mas voltar a animar.

Não tem como falar de história da indústria e não falar das obras de Osamu Tezuka.

Os anos 50 e 60 foram décadas que o Japão foi se consolidando culturalmente. Na década de 70, tanto as animações quanto os mangás já eram produtos buscados e começaram a fazer parte dos hábitos da geração mais nova. 

Assim, os anos 70 e 80 foram anos de ouro para o mercado como um todo. Muita coisa foi produzida em comparação com as décadas anteriores, clássicos nasceram, bilheterias de filmes japoneses bateram animações da Disney, por exemplo, entre outros acontecimentos. 

No entanto, pouquíssimas obras foram de fato exportadas do Japão para o Ocidente. Além dos estadunidenses olharem para os produtos com inferioridade, não entendiam a mídia. Outro problema é que o próprio Japão inicialmente não pensou que as obras/histórias serviriam para serem exportadas. 

A ideia dos japoneses era criar obras voltadas para o público interno, ou seja, que os próprios japoneses gostassem. Algumas obras que tinham suas exceções e grandes forças de exportação, como Rosa de Versalhes, Astro Boy e filmes do Studio Ghibli.

Um exemplo recente do Studio Ghibli foi Memórias de Marnie, que é baseado em uma obra britânica. Tem outras obras ocidentais que foram adaptadas pelo Studio Ghibli, como o próprio Castelo Animado

Para agravar a situação, as editoras ocidentais (vulgo norte-americanas e europeias) acreditavam que os quadrinhos japoneses não cairiam no gosto do público, pois a leitura ao contrário e gírias/piadas regionais dificultariam demais o entendimento. 

Então imaginem o seguinte cenário: de 50 até o fim dos anos 80 o Ocidente tinha algumas dezenas de histórias japonesas licenciadas, e todas apenas animadas com dublagem. Os quadrinhos passaram a ser vistos depois dos estrondosos sucessos no Japão na década de 70 e início de 80. 

Mas a lacuna já estava criada. Os grupos de fãs que tinham visto as animações licenciadas e se apaixonaram pela expressão cultural, passaram a trocar contatos com imigrantes japoneses, universidades japonesas, entre outros residentes ocidentais no Japão, para conseguirem consumir mais. 

E daí em diante os meios alternativos passaram a existir. 

Quando a pirataria otaku começou

Vocês já devem estar cansados de saber que o Brasil foi e ainda é bastante influenciado pelos EUA. Culturalmente falando, é mais ainda. Por isso, a pirataria otaku começou primeiro lá e logo passou a ser praticada aqui também.

Mas essa influência não foi apenas no hábito de piratear. Como dito antes, o Ocidente demorou para entender a verdadeira força da cultura pop japonesa, e por isso mesmo abriu uma lacuna enorme no consumo oficial. 

Politicamente os EUA não tinham uma troca comercial tão aberta como os dias de hoje. Muitos dos animês do século passado foram apenas disponibilizados em pacotes da TV paga. Além disso, muitas outras animações passaram totalmente batidas, e foram grandes sucessos no Japão e hoje são clássicos no país nipônico. 

Os produtos passaram a ser respeitados nos anos 90 e, assim, exportados. Estamos falando de mangás como Lobo Solitário, que é da década de 70. Então já tínhamos um mercado aquecido no Japão que foi negligenciado desde a década de 50 em todo o Ocidente e América Latina. 

Lobo Solitário veio para o Brasil ainda na década de 90 pela Editora Sampa, mas hoje é lançado pela Panini Comics

No Brasil

Aqui no Brasil os mangás tiveram uma história um pouco diferente, porque os grupos de imigrantes japoneses foram muito presentes na nossa história. Mas ainda assim os mangás japoneses que os descendentes importavam eram materiais de luxo para brasileiros. 

Afinal, nas décadas de 80 e 90 nosso índice de alfabetização era precário, imagina então conseguir entender japonês. Mas ainda assim tivemos essas influências nas universidades e nas elites paulistanas, que conheceram um recorte dos quadrinhos japoneses até mesmo antes de muito estadunidense. 

Mas, comercialmente falando, o Brasil só foi ter uma parceria sólida e legalizada com o Japão nos anos 2000 (o que não significa que não tivemos mangás antes disso). Nos EUA e Europa isso chegou mais cedo, no fim da década de 80. Então, quando a pirataria começou nos EUA, o Brasil ainda estava engatinhando para tentar trazer algumas coisas oficiais.

A televisão saiu na frente nesse ponto, principalmente com a TV Manchete. Mas, levando em consideração o número de produções japonesas e o que a emissora tinha, era realmente um punhado pequeno de produtos audiovisuais. 

Sendo assim, antes de termos os produtos oficiais, muita coisa vinha dos EUA ou direto do Japão de forma alternativa, via japoneses e contatos com residentes brasileiros no Japão. Não à toa, aposto que os otaku mais velhos, com cerca de 35 anos, provavelmente compraram animês piratas em VHS.

Falando mais do VHS, Disquete e Fita cassete

A geração atual não sabe direito o que foram todos esses produtos, mas foram importantíssimos para trazer maior liberdade para os consumidores finais de equipamentos tecnológicos. 

Toda mídia audiovisual (música, séries, filmes, animações) era bastante inacessível do ponto de vista individual. Apenas grandes conglomerados tinham os equipamentos e fitas magnéticas, usadas para gravar as mídias na década de 1950. 

Portanto, o público comum só tinha acesso caso fosse ao cinema, comprasse vinil ou tivesse muito dinheiro para comprar os equipamentos de peso. O VHS, a fita cassete e os disquetes que mudaram essa realidade. De formas diferentes. 

Eu nasci na década de 1990, então eu consumi bastante VHS, fita cassete e disquete, mas muitos da geração atual nem sabem o que foram esses equipamentos

O VHS tornou a gravação amadora e caseira uma realidade. Mas essa tecnologia japonesa feita pela Victor Company of Japan (JVC) só chegou mesmo ao ocidente no final da década de 70. 

Foi um sucesso imediato nos anos 80 e 90, mas marginalizado com a chegada do CD e DVD. Teve um importante estímulo na venda de VHSs oficiais no Brasil também, mas normalmente de obras ocidentalizadas, como filmes da Disney, Senhor dos Anéis, Harry Potter etc. 

Já a fita cassete veio como uma forma mais portátil e barata do vinil. Para ouvir um álbum não precisava de uma vitrola, bastava andar com um walkman

Já o disquete foi o primeiro equipamento de “carregamento de arquivos” de PC. Suportavam uma quantidade ridícula de Kbs e Mbs, mas também ajudou bastante para que arquivos e softwares fossem compartilhados com mais liberdade. 

Usamos todos esses produtos no Brasil, principalmente nos anos 90 e início dos anos 2000 (com o uso do CD trocamos o walkman pelo discman). 

Papel das universidades e grupos de fãs no Ocidente

No fim, toda essa introdução foi feita para enfim chegar na relação entre pirataria e mídias japonesas. Com a lacuna gigantesca de produtos oficiais no Ocidente, foram as comunidades de fãs e universitários que mantiveram os produtos japoneses ativos. 

E para manter essa participação de consumo de mídias japonesas elas usaram a pirataria. Com o emprego do VHS e a possibilidade de gravar programas de forma caseira, os norte-americanos e europeus gravavam os animês das redes pagas, assim como procuraram contatos diretos com o Japão para gravar as versões originais. 

“Com o advento dos videocassetes, os fãs norte-americanos conseguiram dublar os programas dos canais com transmissão em japonês e compartilhá-los com amigos de outras regiões. Logo os fãs começaram a fazer contatos no Japão – tanto a juventude local como militares estadunidenses com acesso às novas séries.” (JENKINS, p.220, 2006) 

É bom lembrar que o formato de videocassete dos dois países eram iguais, o NTSC, então isso facilitou muito o fluxo desses conteúdos, mesmo com as limitações geográficas. 

E as universidades ocidentais também foram fundamentais para difundir a cultura otaku.

“Nos campi das faculdades, organizações de estudantes formaram grandes bibliotecas, com material legal e pirateado, e realizavam exibições destinadas a educar o público sobre os artistas, estilos e gêneros do anime japonês. O Anime Club, do MIT, por exemplo, organizava exibições semanais utilizando material de uma biblioteca com mais de 1.500 filmes e vídeos. […] Na maioria dos casos o clube exibia conteúdo sem tradução”. (JENKINS, p. 220, 2006). 

Campus do Massachusetts Institute of Technology

Na mesma época que os mangás e animês passaram a ser licenciados oficialmente no Ocidente com mais respeito, os fansubs surgiram. A tradução e legendagem amadora veio também para tentar preencher a grande lacuna de obras que nunca tinham chegado antes. 

Além disso, os sistemas sincronizados de VHS e S-VHS permitiram a adição de legendas nas fitas caseiras, então a legenda de fã começou a ser empregada em VHS, antes mesmo de usarem a Internet. 

“No inícios dos anos 1990, grandes convenções de anime trouxeram artistas e distribuidores do Japão, que ficaram perplexos ao ver uma cultura de fãs tão próspera em torno do conteúdo que, na verdade, eles nunca haviam vendido no exterior. Eles voltavam ao Japão motivados a atrair esse interesse comercialmente. Algumas figuras fundamentais da indústria de animação japonesa estavam entre aqueles que haviam auxiliado e apoiado a distribuição alternativa norte-americana, uma década antes”. (JENKINS, p.221, 2006) 

De forma bem direta, nos EUA, os meios alternativos foram essenciais para o sucesso da cultura otaku no Ocidente, o que refletiu nos países da América Latina como um todo. Inclusive, os grupos amadores se profissionalizaram e tornaram essa paixão por animê uma profissão nos anos seguintes. 

“As primeiras empresas de nicho a distribuir anime em DVD e fitas de vídeo surgiram quando os fã-clubes se profissionalizaram, adquirindo os direitos de distribuição das empresas japonesas.” (JENKINS, p.222, 2006)

No Brasil, quem era morador em São Paulo, ia no Shopping Sogo para comprar DVDs piratas, e esse mercado ainda existe nos dias de hoje.

Mas, imaginem o seguinte cenário: pouquíssimos brasileiros tinham acesso a alguns clássicos, como os OVAs de Rurouni Kenshin, Hellsing e até mesmo One Piece. Então usamos e abusamos de VHS e DVD pirata até que as plataformas de streaming de animês se estabelecessem com mais solidez. 

O OVA de RK é um dos grandes ícones da década de 90 e anos 2000 para o mundo otaku brasileiro. Créditos: Studio DEEN

Estamos falando bastante de cultura otaku por esse ser o tema do texto, no entanto as Universidades de forma geral pirateavam todo tipo de arquivo para fins de conhecimento, criação de clubes ou pelo puro prazer de ir contra as normas estabelecidas. Na música, por exemplo, as universidades também tiveram um papel que fortaleceu o hábito do consumo do mp3. 

“Nos dormitórios de todas as universidades, calouros esgotaram a capacidade de seus HDs com arquivos mp3. As próprias instituições eram cúmplices inconscientes, e a pirataria musical tornou-se, mais para o final dos anos 1990 o que experimentar drogas havia sido para o final dos anos 1960: o desprezo de uma geração inteira tanto pelas normas sociais quanto pelas leis vigentes, quase sem nenhuma consideração das consequências. (WITT, p. 88, 2015)

Em ambos os setores do entretenimento, com suas devidas proporções, é claro, a pirataria dos anos 90 e início dos anos 2000 foram grandes promoções dos produtos oficiais. Quando os animês e mangás chegaram na Europa e EUA, tiveram estoques esgotados, muita gente consumindo e apresentando para as pessoas que ainda não conheciam. Estamos falando de obras como Akira, Studio Ghibli, Ghost in the Shell, Gen, Pés Descalços, Sailor Moon, entre outros clássicos. 

Na música, a rentabilidade e fama eram muito mais altas do que o nicho otaku da época, mas Napster e companhia só ajudaram as grandes gravadoras a aumentarem suas vendas. 

“Mesmo com a pirataria digital saindo dos dormitórios universitários para conquistar o público como um todo, o ano 2000 foi um ano excepcional para a indústria. Os consumidores compraram mais música naquele ano do que nos anteriores ou posteriores – com cada norte-americano gastando em média mais de U$70 só em CDs. ‘The Next Episode’, ‘Stan’ e ‘Big Pimpin’ estavam entre os arquivos mais pirateados do Napster, mas isso parecia traduzir diretamente no aumento das vendas dos álbuns.” (WITT, p. 113, 2015)

Depois dos primeiros anos dos anos 2000, o cenário passou a ser decadente, com a morte definitiva do CD e a chegada de formatos novos e diferentes só depois de 2007 (ainda sem Spotify e companhia que estamos acostumados hoje). 

A Internet como base para a pirataria

A Internet antes dos anos 80 era apenas fechada para órgãos do governo e universidades, e apenas no fim da década que a população geral pôde acessar, ainda quando tudo era mato e nenhuma empresa levava o WWW a sério. 

Mas foi nos anos 90 que os entusiastas das universidades e da tecnologia passaram a criar softwares e equipamentos usados em computadores. Foi nessa época que o IRC (Internet Relay Chat) surgiu como um programa de compartilhamento de arquivos, usando a banda larga como forma de transferência. 

E daí em diante que a pirataria otaku começou a ter um crescimento real e sólido. E claro que não apenas mídias japonesas, mas todo tipo de arquivo que você imaginar. 

No geral, a Internet era um lugar tedioso nos anos 90. O que importava era o IRC, de longe. 

“Ainda não existiam as redes sociais, o comércio eletrônico e nem a Wikipédia. A página da web típica era uma coleção inacabada de links inativos com as palavras ‘EM CONSTRUÇÃO’ piscando no topo, ladeados por dois gifs animados de sirene. Tudo era feio e difícil de navegar”. (WITT, p. 65, 2015)

O IRC parece um bloco de notas organizado por grupos

O uso do IRC para difundir a pirataria

A Internet era extremamente sem graça na época, mas o IRC trouxe vários entusiastas para o WWW. Eram fãs de música, filmes, séries, programação, política e até sexo. Todos eles de alguma forma encontravam um conforto no IRC.

O IRC foi um conjunto enorme de servidores privados que anteciparam os canais mais comerciais da web. Entrar no IRC era como entrar em um shopping virtual. Nesses servidores o usuário podia conversar com outros users, assim como compartilhar e baixar arquivos. 

É importante lembrar que na época a velocidade de conexão, mesmo do Ocidente, não era lá essas coisas. Baixar uma música de 2MB demorava horas. Arquivos como filmes e séries, que são bem maiores, demoravam dias para baixar. Então a grande graça mesmo era conversar sobre as coisas que gostavam sem barreiras geográficas. Baixar era um bônus.

“Você criava um nome de usuário e entrava em um canal indicado por um rótulo: #política, #sexo, #computadores etc. Os canais quase não eram moderados e não estavam submetidos a nenhuma autoridade centralizada, nada era considerado inapropriado”. (WITT, p. 65, 2015)

O nome de usuário permitia que todos fossem anônimos. No ramo da música, por exemplo, os grandes piratareiros dos anos 90 e anos 2000 nos EUA – conhecidos como Glover e Dockery -, eram fissurados pelo IRC e por todos os avanços tecnológicos em computadores e na Internet. 

“Glover e Dockery ficaram viciados, e havia dias em que, mesmo depois de catorze horas na companhia um do outro [eles trabalham juntos na PolyGram], os dois iam para o mesmo canal depois do trabalho. A única diferença era que no IRC Dockery deixava de ser Dockery, e sim ‘Jah Jah’, ou às vezes ‘StJames’, e o Glover era ‘Darkman’, ou ainda, na maioria das vezes, brincando com as iniciais de seu nome, ‘ADEG’”. (WITT, p. 66, 2015)

E como na época da pirataria otaku veio antes da Internet, com uso de VHSs, Dockery e Glover, fanáticos por música e computadores, faziam a pirataria “offline” também. Mas usando disquetes. 

“Tanto Glover quanto Dockery haviam participado da subcultura de compartilhamento de arquivos desde a época dos BBSs e compartilhado disquetes cheios de programas crackeados pelo correio. Receber um disquete por carta era como uma manhã de Natal com versões gratuitas de Duke Nukem e Wing Commander debaixo da árvore. Agora, no IRC, todo dia era Natal, com um script programado chamado “bot” no papel do Papai Noel automatizado, arquivando instantaneamente sua lista de desejos de arquivos crackeados sob demanda.” (WITT, p. 66, 2015)

Stephen Witt é um jornalista que ficou bons 4 anos investigando e estudando sobre pirataria da música e trouxe um debate importantíssimo sobre o tema

Isso é uma forma de mostrar que a pirataria se alastrou para muitas áreas fora da otakice, mas ainda assim os meios de fazê-la foram similares. Os otaku também usaram o IRC, também faziam parte de algum canal #anime ou #manga. Aqui no Brasil isso aconteceu nos anos 2000 com mais força, já que a Internet demorou um pouco mais para ser estável.

Por experiência própria, eu e meu irmão usamos o IRC para baixar mangás como Slam Dunk (2005), Death Note (2007) e Tsubasa Reservoir Chronicles (2006). Lemos o início das histórias para então comprar os mangás oficiais, lançados respectivamente pela Conrad – hoje Panini – e os dois últimos pela JBC. 

Depois do IRC, torrents viraram o grande doce de leite dos piratas. O que a gente chama de softwares peer-to-peer. 

“Ao que se revelou, aqueles caras dos warez[1] não pirateavam apenas software. Músicas, jogos, revistas, imagens, pornografia, fontes – pirateavam tudo que podia ser compactado.” (WITT, p. 67, 2015)

O que são fansubs e scanlations

O fenômeno da legenda e tradução amadora, mais conhecido como “trabalho de fãs”, não é algo exclusivo do Brasil, EUA e nem sequer do ocidente. Países como Coreia do Sul e China, Filipinas, e todo o oriente também possuem seus grupos de legenda/tradução amadora. 

Como vocês viram nos subtópicos acima, esses grupos não chegaram apenas com o advento da Internet, mas na verdade são bem antigos na história da pirataria. Inclusive, Stephen Witt, jornalista que escreveu sobre a pirataria da música nos EUA, explicou que a pirataria é bem ampla e remonta 300 anos de prática em diversos setores de mercado. 

Portanto, a Internet apenas facilitou que a pirataria se tornasse algo mais global e não específico de um país/região. Os fansubs são os grupos que trabalham majoritariamente com audiovisual em geral, não apenas de animes japoneses. Já os scanlations são de quadrinhos.

Como estamos falando de cultura pop japonesa, há grupos que focam sim apenas em mídias japonesas. Eles chegaram nos anos 80, principalmente, com o uso do VHS caseiro, e se espalharam ainda mais com a chegada da Internet comercial. 

Bom lembrar que quando falamos de animação, praticamente todo o fansub – brasileiro ou não – trabalha com animês japoneses. E por quê? O maior tipo de animação do planeta vem do Japão, com uma representação de 60% do mercado mundial. Eles são os animês de temporada, as animações de cinema e os OVAs/ONAs etc. (GOTO-JONES, APUD JOSEPHY-HERNANDÉZ ET AL, 2017)

A legendagem de animês começou justamente pelos fãs. Anime: Durarara

Em todos os materiais que pude ler para este artigo, todos que conceituam os fansubs e scans os chamam de projetos de fãs. O que isso significa? De primeira, a intenção desses grupos não é ganhar dinheiro, e sim distribuir e espalhar a mídia para o público de massa que não tem acesso oficial. 

“Os vídeos legendados por fãs com frequência exibiam avisos solicitando aos usuários para ‘cessar a distribuição quando a mídia for licenciada’. Os clubes não estavam tentando lucrar com a distribuição de animes, e sim expandir o mercado; tiravam de circulação qualquer título que tivesse encontrado um distribuidor comercial. De todo modo, a qualidade das cópias comerciais era superior à de suas cópias gravadas e regravadas”. (JENKINS, p.222, 2006)

Esses grupos não são pagos pelo seu trabalho. Nem por quem consome as traduções amadoras e nem por empresas legalizadas. No entanto, é comum os grupos, ocasionalmente, pedirem doações para manter os servidores/hospedagens ativos, ou mesmo custear um envio do material por correios – é o caso de doujinshis e fanzines[2], por exemplo. (JOSEPHY-HERNANDÉZ, 2017)

De toda forma, qualquer força financeira não é de uso individual e comercial, é apenas para manter o projeto funcionando. Muitos fansubs e scanlations traduziram e trabalharam em cima de obras que não são licenciadas em seus países. 

Em mangás o mesmo fenômeno aconteceu: traduções amadoras que são conhecidas como scans. Obra: Gintama

No entanto, um dos grandes códigos éticos dessas comunidades de fãs era parar com a tradução amadora quando o produto chegava por vias oficiais. Mesmo criadores de fanzines cobravam valores risíveis apenas para custear a impressão dos materiais. 

Quando aconteciam situações de fãs pegarem essas fanzines para vender a preços abusivos, eram prontamente repudiados pelos autores e outros fãs [3]. 

“Eles traduzem como um hobby para providenciarem um ‘serviço’ feito de fãs para outros fãs que querem um entendimento melhor de uma mídia japonesa que recentemente foi lançada, mas não possui legendas oficiais.” (JOSEPHY-HERNANDÉZ, p.04, 2017)

Novamente estamos falando da comunidade otaku, mas no geral, as comunidades amadoras da cultura pop se assemelham neste quesito de código de ética. Fãs de Star Wars, Star Trek, Harry Potter e fãs obcecados por músicas seguiam a linha de não lucrar em cima dos vazamentos ou criações próprias. 

“A Scene [um dos principais sites piratas da música nos EUA] seguia um princípio antigo que proibia a venda do material vazado. A cultura estabelecia uma distinção entre o compartilhamento de arquivos online e a pirataria visando lucros financeiros. O sistema fechado dos topsites era visto como um sistema informal de cooperação e troca, um sistema que podia ser moralmente idulgente, mas que talvez não fosse sequer ilegal. A pirataria física, por outro lado, era vista como uma quebra séria de princípios éticos. (WITT, p. 135, 2015)

Justamente por se tratar de um trabalho amador, tanto os grupos de scans quanto os de fansubs não recebem scripts originais. Os maiores fansubs – normalmente chineses e norte-americanos – possuem algum “tradutor” que conhece a língua japonesa, mas não tem formação em tradução, portanto o trabalho é literal e no achismo. 

Assim, quando há uma tradução do japonês para o inglês, essa tradução amadora se espalha ao redor do mundo. Aqui no Brasil, por exemplo, é comum que as traduções sejam feitas do inglês, ainda que alguns grupos também tenham entusiastas da língua japonesa. Isso acontece tanto para mangás quanto para animês. 

Esse processo é o que chamamos de “retradução”, ou seja, além da primeira tradução não ter um filtro profissional, grupos menores, como os da América Latina mesmo, utilizam essa tradução para retraduzir para o português ou espanhol. Resumindo: é uma tradução em cima de outra tradução amadora.

De forma generalizada, os fansubs e scanlations no mundo inteiro se assemelham bastante no modo de trabalho e de comunicação com o fandom. Ao fim do texto deixarei alguns materiais que mostram a realidade do trabalho amador em diversos países. 

Na Europa, França e Itália são os países que mais se destacaram no meio de legendagem e tradução amadora. 

No leste asiático, ainda que a China desponte como o grande mercado da pirataria (não só em rapidez, mas em quantidade e variedade), países como Filipinas, Malásia, Taiwan e Tailândia também têm grupos de fãs e grandes comunidades que pirateiam produtos japoneses. 

Hoje também são mercados importantes para compra de produtos oficiais e que empresas do Japão têm mais condição de fazer trocas legalizadas. 

Fanzines e Faça você Mesmo: a linha aceitável no mundo otaku

No Japão, o fenômeno das fanzines/doujinshis alavancou a popularidade de uma série de obras da cultura pop desde meados da década de 80 com a criação da Comiket. O evento se tornou um hábito e há “mini comikets” por todo o país nipônico até os dias de hoje.

No entanto, os doujinshis sempre partiram do pressuposto de fãs criando obras com direitos autorais. Esse fenômeno da comunidade de fãs de criar produtos extras e amadores não acontece apenas nos mangás, mas em toda cultura pop. 

Fã filmes, fã clipes, fã trailers, fã pôsteres, até cosplays e as tradicionais fanfics e fanarts são constantemente criados também nas comunidades ocidentais e grandes obras se tornaram as favoritas dessa galera, como Star Wars principalmente. 

“Filmando em estúdios de garagem, reproduzindo efeitos especiais em computadores domésticos e pegando músicas de CDs e de arquivos MP3, os fãs criaram novas versões da mitologia de Guerra nas Estrelas (1977). […] Guerra nas Estrelas tornou-se a ‘lenda’ deles, e agora estão determinados a reescrevê-la a seu modo”. 

A diferença peculiar dos doujinshis, no entanto, é que as empresas japonesas não olharam a prática com olhar negativo, como aconteceu nos Estados Unidos e Europa, que fizeram de tudo para restringir o poder dos fãs. 

Muito pelo contrário, muitos profissionais da área artística japonesa incentivaram a recriação de obras aclamadas pelas mãos de novos talentos.

Além disso, muitos artistas não ficam apenas no doujinshis ou fanbooks nesses eventos, mas também criam suas próprias histórias independentes para ver como os leitores vão reagir. Algumas obras que exemplificam as comikets são: Genshiken, Wotakoi: Love Is Hard for Otaku e Still Sick. 

Wotakoi é um anime que mostra bem a realidade otaku do Japão. No Brasil o mangá é publicado pela Panini (infelizmente)

“Como observa o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Temple, Salil K. Mehra, a venda underground de mangás produzidos por fãs, com frequência derivados direitos de produtos comerciais, ocorre em grande escala no Japão. […] Raramente tomando medidas legais, os produtores comerciais patrocinam esses eventos, usando-os para anunciar seus lançamentos, recrutar potenciais talentos e monitorar as mudanças no gosto do público.” (JENKINS, p.223, 2006) 

Para explicar um doujinshi com mais facilidade, vou criar uma historinha para vocês. 

Haikyuu é um mangá da Shonen Jump que agradou milhões de leitores no Japão e no mundo. A história é focada no time de vôlei masculino do colégio Karasuno, com o protagonista ‎Shoyo Hinata buscando seu sonho de ser um jogador profissional mesmo tendo uma baixa estatura. 

Durante a história vemos a jornada do time em diversos jogos amistosos, campeonatos regionais e outros muito mais importantes. Nessa jornada temos a evolução dos jogadores, personagens secundários e o relacionamento entre eles para que a amizade seja boa também fora das quadras. 

É pensando nesse contexto que um autor amador ou independente, apaixonado pela obra, vai tentar recriar trechos da história, ou mesmo adicionar momentos que nunca estiveram lá oficialmente. São visões alternativas, de fãs, daquela história aclamada. Assim, esses artistas podem fazer jogos totalmente novos, recriar os resultados e mudar a balança da história do jeito que convir. 

E além dos jogos em si, todos esses artistas podem recriar, através de sua visão da história, o relacionamento entre os personagens, que podem ser mais do que simples amigos. É aí que temos as classes NSFW ou R+18 em histórias que sequer falam de romance. 

Agora que está melhor explicado, diversos artistas começam suas carreiras fazendo essas recriações de mundos já estabelecidos. Seja por sentir falta de alguma coisa, seja para se divertir, seja para focar nos personagens e momentos que mais gosta, dando maior profundidade, camadas e desenvolvimentos. 

Como as empresas japonesas e a própria legislação não proibiram essas criações (pois todas as criações de fãs não respeitam a lei de direitos autorais internacional), essa prática se tornou de fato um fenômeno. 

Apenas em 2019, por exemplo, segundo dados da Statista, a Comiket de Tokyo do Verão (junho-julho-agosto) recebeu 730 mil visitantes, o maior número desde 2010. Eventos similares à Comiket de Tokyo acontecem ao redor das principais cidades japonesas. 

Hoje, com o crescimento das trocas digitais e expansão das criações artísticas no Japão, temos uma plataforma como o Pixiv, em que os autores das Comikets não precisam esperar todos os eventos para venderem suas obras fisicamente. Tudo acontece pelo Pixiv, seja com doujinshis, seja com obras independentes. 

É possível acompanhar os trabalhos recentes dos autores, contribuir mensalmente com o artista, comprar pela plataforma e até comentar nos posts. O Pixiv, que em 2007 nasceu para ser uma comunidade para artistas, hoje é definitivamente uma plataforma consagrada e que se tornou comercial.

Autores japoneses que hoje possuem contratos profissionais com editoras começaram pela plataforma. O grande exemplo que posso dar é a autora Kabi Nagata, autora de Minha Experiência Lésbica com a Solidão. Ela postou no Pixiv sua biografia em quadrinhos em 2016, a obra viralizou, e enfim a autora recebeu um contrato com a East Press. 

Já falei de Minha Experiência Lésbica com a Solidão algumas vezes no Chimichangas. Resumindo: leiam. O mangá foi publicado pela NewPOP (que bom)

“Os fãs sempre foram os primeiros a se adaptar às novas tecnologias de mídia; a fascinação pelos universos ficcionais muitas vezes inspira novas formas de produção cultural, de figurinos a fanzines […].” (JENKINS, p. 108, 2006)

Muitas autoras de BL e yuri também iniciam suas carreiras nos doujinshis, fazendo suas versões de romances de personagens já estabelecidos na cultura pop japonesa. Para enfim, fazerem suas próprias histórias e alcançarem o sucesso.

A Nakatani Nio, autora de Yagate Kimi ni Naru, um yuri de muito sucesso no Japão e que chegou ao Brasil pela Panini, começou sua carreira fazendo doujinshis de Touhou Project e Kantai Collection. Hoje é, certamente, uma das principais autoras de romance lésbico no país nipônico. 

Nakatani Nio nunca errou com Yagate Kimi ni Naru (Bloom Into You). O mangá será publicado no Brasil pela Panini em 2021

Casos em que fãs trabalharam melhor que a empresa legalizada

Ainda que os produtos oficiais sejam importantes, já que há o pagamento de royalties, direitos autorais e de imagem, nem tudo são rosas. Já aconteceu e acontecem gafes mesmo no setor profissional. 

É importante aqui explicar que nem todas as empresas que compram os direitos, seja lá de qual produto japonês for, conhece a fundo o próprio mercado como os fãs. Isso acontece com mais frequência do que o esperado, mas o fato é que os fandoms são os grandes entusiastas de obras (seja para o bem ou mal). 

E normalmente os fãs têm mais noção do que o consumidor da mídia gosta, e é nesse ambiente mais aberto, sem travas com leis e regras pré-estabelecidas, que alguns trabalhos interessantes aparecem, mesmo sendo no contexto amador. 

Casos fora do Brasil

Casos internacionais foram levantados pelo autor Joseph Hernandèz, autor do paper “The Translation of Graphemes in Anime in Its Original and Fansubbed Versions”. De acordo com seu artigo lançado na revista de tradução e estudos sociais da Universidade Nacional da Costa Rica, há alguns casos curiosos que as empresas oficiais não tiveram cuidados com detalhes em obras japonesas, e isso fez toda diferença no consumo.

Ele traz casos de legendagem e edições de animes como Tengen Toppa Gurren Lagann!, Jojo’s Bizarre Adventure, Kill la Kill e Tokyo Godfathers. Entre todos os casos, o que achei mais interessante para trazer para vocês é o de Tokyo Godfathers, filme de 2004, feito por Satoshi Kon. 

Assistam Tokyo Godfathers na vida de vocês. Hoje tem disponível para alugar nas principais plataformas, tipo Prime Video.

Algo curioso quando se trata de anime: os fansubbers não possuem o script original da obra. As primeiras traduções do japonês são feitas simplesmente ouvindo o original e traduzindo na mão. Quando a gente fala de Brasil, é comum ter os scripts em inglês, na famosa retradução que eu já comentei com vocês. 

E mesmo sendo um “trampo de corno”, algumas legendagens amadoras saem melhores do que a encomenda. 

O caso de Tokyo Godfathers é incrível. No início do filme temos uma abertura com um poema aparecendo na tela, e no original japonês graficamente aparece todas as palavras vão surgindo em “passadas” de poema mesmo, em branco, para fazer um paralelo direto com a neve e a época do Natal. 

Abertura original do filme, com o poema ao lado direito da tela

“Os dizeres do poema que aparecem no lado direito da tela pode ser lido [em japonês e inglês]: 

Osanago no [5 sílabas] / A little baby

Houhou ni konayuki [7 sílabas] / Powdery snow on it cheeks

Kiyoshi kono yoru [5 sílabas]. On this holy night” (HERNANDÉZ, p. 87, 2017)

Hernandéz explica que não é um poema fácil de narrar, mas ele está renderizado na tela de fato como se lê um poema, o que é um toque especial do Kon na direção do filme. No DVD original de Tokyo Godfathers em todo o Ocidente e América Latina, no entanto, as legendas do poema são totalmente desengonçadas, amarelas, muito grandes e que claramente interferem na leitura e visualização do poema. 

Mesmo a legenda em português, feita pela Sony aqui no Brasil, não levou em consideração nada dessas nuances japonesas e nem do Satoshi Kon. 

Sim, é possível ter o DVD original em português, porém se prepara para desembolsar uns R$100

Em todos os casos, só fizeram uma legenda estourada, sem levar em consideração a leitura em poema e nem permitiram a visualização dos ideogramas japoneses que aparecem na tela. E aí quando a gente vai para os fansubbers, o negócio muda de figura. 

Um dos grupos citados por Hernandez encontrou a melhor saída possível, agradou o público e respeitou a decisão do Kon, e ainda permitiu a visualização dos ideogramas japoneses. Esse grupo foi o “bxyh”.

Esse fansub fez a tradução com uma legenda traduzida no canto superior da tela, mas do lado esquerdo, já que o poema em japonês aparece no canto direito. Eles fazem um estilo de legenda para lembrar um poema e respeitam a cor branca (e legível) para fazer todas as alusões que o próprio Kon queria. 

Versão do bxyh

Foi uma decisão simples, voltada somente para a abertura do filme. Outros fansubs, que preferiram algo ainda mais simples, fizeram uma legenda menor do que o original em DVD e seguiram a cor branca da neve, permitindo que ao menos o haiku pudesse ser lido e notado. 

No Brasil

Quando falamos de Brasil, há diversos casos de traduções erradas – o que é diferente de adaptadas, tá? Para entender essas diferenças todas sobre tradução ouça o Cantinho da Pah~ epi 23 – Como funciona a tradução de quadrinhos e animês no Brasil).

Vou trazer apenas 2 casos super recentes e da mesma editora: Panini – Planet Mangá. Em ambos os casos, a tradução incorreta na versão oficial está traduzida fielmente por scans brasileiras. 

O tweet já fala por si só. A versão brasileira de Jujutsu Kaisen diz o oposto do que está na tradução oficial em inglês (em japonês também). 

Essa versão é ainda mais engraçada, pois o tradutor criou uma nova medida de choque, chamada BOLTONS, sendo que era o famoso VOLTS. Dr. Stone é um mangá que fala de ciência (ainda que tenha muita ficção), e um erro tão básico e fundamental que chega a ser frustrante. 

E o pior, esses trechos passaram por mais de um profissional e nenhuma alma da editora viu que tinha algo estranho. A grande diferença de uma scan e para uma empresa oficial é que, na oficial, a gente tem o dever de cobrar por um trabalho bem feito e que tenha um recall de todos os lotes para esses erros serem corrigidos. 

Nesse ponto, quando há erros crassos assim, os capítulos digitais saem ganhando, pois é possível corrigir e atualizar o material, que automaticamente também será atualizado na sua biblioteca e nas lojas digitais. 

O lado sombrio da pirataria otaku

Até os anos de 2010, quando as plataformas de streaming realmente apareceram mais e deram mais opções acessíveis para consumirmos oficialmente os animês, praticamente todo brasileiro só consumia produto otaku pela pirataria. 

Era baixando torrent, RMVB, AVI, por IRC. Todas as possibilidades permitiam que uma comunidade existisse. Os grandes eventos de cultura pop japonesa, como Animecon, Anime Friends e similares vendiam stands para lojas piratas da Liberdade ou mesmo fansubs e scanlators. 

Era o comum, o padrão, o hábito de consumo. Alguns fansubs e lojas de artigos piratas (camisetas, canecas, mochilas, toucas etc) chegaram a ter stands no ano de 2017 no Anime Friends, 3 anos atrás.

Olhar para os produtos oficiais, licenciados e com empresas que detém os direitos de imagem/exibição/produção é algo extremamente recente na realidade brasileira. 

E justamente por esse hábito de piratear, certos sites piratas aproveitam o nicho que ainda não está acostumado a consumir de forma oficial, para ganhar dinheiro em cima. São sites que fazem ou fizeram concorrência desleal com as empresas oficiais brasileiras. 

Além disso, são sites que parte dos fansubs e comunidade de fãs também repudiam, pois são grupos que pararam de pensar na obra e no bem do autor para ganhar dinheiro. 

Caso VIP da mangasPROJECT

Acredito que o caso mais popular e que chocou parte da comunidade (tanto a favor e contra os sites piratas) foi o da mangasPROJECT, que em 2016 criou uma ala VIP para os leitores da plataforma. Para ser VIP você pagava uma assinatura, como se aquela plataforma fosse, sei lá, uma Crunchyroll da vida. 

Ou seja, um site agregador com uma cacetada de mangá já lançados no Brasil fez planos de assinaturas na maior cara de pau. É claro que isso ia dar confusão, certo? Foi quando a Editora JBC entrou com um processo extrajudicial, notificando ao site que tirassem todos os títulos já lançados pela editora. 

Quando a situação foi para a área jurídica, e o caldo entornou, o site tirou do ar a página VIP. Para evitar novas polêmicas, também parou de fazer traduções das obras da JBC e lançar na plataforma. Entre elas estava nada mais nada menos que Boku no Hero Academia. Ninguém sabia para onde ia o dinheiro das assinaturas, mas certamente nada era legalizado. 

O site alegou que era tudo fruto de doações mensais, no entanto, ter essas contas VIPS dava regalias na plataforma e coisas exclusivas, como os “mangapoints”, que permitiam leituras sem anúncio, por exemplo. Algo que…er…a Crunchyroll faz, e ela é uma empresa legalizada. A mangasPROJECT nunca foi. 

Ainda bem que eu salvei print dessa grande pérola

E no meio desse bafafá todo, muitos mangás agregados ali eram de grupos menores que sequer a mangasPROJECT traduziu. Essas scans com uma mínima ética não autorizavam que seus trabalhos fossem adicionados, e não queriam compactuar com essa pataquada de assinatura vip. 

Até o presente momento desta matéria, o site se encontra fora do ar e muitos projetos da “marca” PROJECT não existem mais também (como a finada piecePROJECT). No entanto, esse caso de 2016 também lembra muitas ações inescrupulosas feitas pelos pirateiros da indústria da música [4]. 

Ainda que muitos canais, fóruns, servidores privados etc cobrassem por princípios de quem baixava as músicas e fazia vazamentos, no fim, esses vazamentos digitais iam para os CDs e eram vendidos a preços de banana nos camelôs de qualquer cidade norte-americana. 

Glover, o principal pirateiro dos chãos de fábrica da PolyGram chegou a faturar sozinho uma quantia que o permitiu comprar um carro e outros artigos de luxo. Eram essas vendas paralelas sem o menor pudor que mais prejudicaram a indústria como um todo.

No entanto, ao contrário do mercado audiovisual e fonográfico estadunidense, que faturaram bilhões de dólares mesmo com a pirataria, a cultura pop japonesa no Ocidente/Latam tinha números extremamente discretos, o que tornava a prática de vender DVDs, CDs e criar assinaturas para produtos ilegais muito mais agressiva para as empresas oficiais daqui e japonesas, assim como autores.

“Em 1998, Glover construiu uma torre. Isto é, sete gravadores de CD empilhados que faziam cópias perfeitas do original. [..]  Ele se concentrou principalmente nos filmes. […] Glover baixava esse material, fazia cópias com a torre e depois vendia as mídias piratas por um valor de 5 a 10 dólares cada. A qualidade dos vídeos era baixa, mas o negócio era promissor” (WITT, p. 91, 2015)

Roubos do arquivo nas plataformas de streaming

Há grupos de fansubs que procuram baixar a mídia original (chamada de RAW), esperam por uma tradução relativamente confiável e assim fazem suas versões. O timing, a tradução e os efeitos especiais (caso existam) são todos feitos na mão, normalmente por prazer e para melhorar a prática de trabalhar com audiovisual. 

Mas há sites espertinhos que não fazem nada do trabalho de fãs e se auto intitulam “fansubs”. O que esses sites na verdade fazem é encontrar uma forma de “hackear” a versão oficial e subir em seus servidores. 

Sim, as traduções são da Crunchyroll, Funimation, Netflix, Amazon Prime, Hidive e similares. Não só as traduções, todos os efeitos, todas as edições, todo o trabalho de legendagem não existe. É a pura “chupinhagem” do trabalho alheio para ver se ainda há pessoas que fazem doações no site e clicam nos anúncios. 

Não dá pra saber o quanto esses sites conseguem lucrar em cima desse tipo de prática, mas pensem o seguinte: qualquer U$100 dólares conquistados pelo Google Adsense ou outros Ads já é um lucro, pois não houve trabalho mesmo. 

Os projetos de anúncios na Internet até possuem algumas regras nos sites, mas geralmente quase tudo passa, então, quando você acumula uma quantia em dólar, você pode sacar esse dinheiro para uso próprio

Inclusive, no meio profissional de legendagem/dublagem esses sites são chamados de sites piratas, enquanto os fansubs de verdade são chamados de fansubs, pois fazem de fato trabalhos de fãs e não ganham nada em troca. Inclusive muitos sequer trabalham com obras já licenciadas. 

A Punch Fansubs atualmente segue a linha de não traduzir animes da Crunchy, por exemplo, mas ainda possui uma “doação mensal” que facilita o usuário a ter um link direto para assistir episódios em alta resolução.

As tretas entre scans e sites agregadores

Sim, são coisas diferentes. Vamos lá, exemplificar. Um site como a Union Mangás é um site agregador. Mais de 50% das obras que estão ali eles não traduziram. O que eles fazem é juntar o máximo de obras possíveis já traduzidas por scans para ficarem disponíveis para leitura. 

Por um lado há a explicação de facilitar para o leitor, que não precisa caçar um milhão de scans pela Internet para achar o que quer ler. No entanto, todo tipo de lucro que esses sites agregadores recebem são 100% para eles mesmos, manchando até trabalhos de scans menores que trabalham em um único título e não quer de maneira alguma ser usada como trampolim. 

Porque, vocês se lembram, né? Existe uma linha ética em scans para não lucrarem em cima de obras com traduções amadoras. Quando essas obras de scans menores ou que trabalham em obras muito específicas chegam em um agregador, essa linha ética se quebra. 

Ainda que sites agregadores não ganhem dinheiro a níveis absurdos, como grandes empresas japonesas de mangás, por exemplo, ainda assim lucram em cima desses produtos via anúncios. Há sites que usam apenas esse dinheiro para manter os servidores funcionando, de fato. 

Afinal, manter uma lista enorme de mangás não é algo tão barato e simples. É preciso pagar uma hospedagem robusta, mais servidores particulares. Ainda assim, por ser algo totalmente ilegal, não existe prestação de contas nem com a comunidade, muito menos com os órgãos competentes do país. Ninguém sabe exatamente para onde vai o dinheiro. 

Perigo de ter transações financeiras em sites agregadores

Esse problema de ter um caixa financeiro guardado para manutenção do projeto de fãs é muito perigoso para qualquer trabalho pirata, não importa o quão correto você queira ser. Essa questão ocorreu também no meio da música, com o canal Oink, do programador Alan Ellis. 

“No verão de 2006, o Oink estava recebendo dez mil acessos por dia, e as contas de hospedagem eram de milhares de dólares por mês. Várias vezes, Ellis teve que fazer campanhas de arrecadação na página inicial do site. A resposta da comunidade era incrível. Dentro de 1 ano, o exército de Ellis doou mais de 200 mil libras. As pessoas gostavam do Oink e estavam dispostas a pagar por ele” (WITT, p. 186, 2015)

Allan Ellis, dono do Oink, que fechou em 2007

Ellis foi preso no Reino Unido em 2010, mas julgado como inocente pelo tribunal, pois todo esse dinheiro ele não gastou consigo mesmo, tudo era pro Oink, e ele provou que não houve nenhuma obtenção de lucro com o site. Ainda assim, ele foi dono de um dos maiores canais da pirataria musical entre 2004 e 2007. 

“Em suas postagens regulares na página inicial do site, Ellis era transparente em relação às finanças do Oink e aos custos envolvidos na manutenção do site, mas o que ele fez logo a seguir foi incomum e, para seus detratores, muito suspeito. Enquanto continuava insistindo publicamente que o site era um projeto sem fins lucrativos, nos meses seguintes Ellis abriu dez contas de banco separadas em seu próprio nome e então transferiu o excedente das doações feitas na conta do PayPal do Oink para essas pequenas contas pessoais.” (WITT, p. 186 e 187, 2015)

Acontece que as empresas oficiais não sabem de fato se houve obtenção de lucro ou não até iniciar um processo e as coisas serem devidamente explicadas. É no processo judicial que é possível ter informações sigilosas de usuários, pessoas, downloads, quantidade de ganhos com anúncios, entre outros dados. 

É importante, no entanto, deixar claro que ao menos no Brasil esses processos judiciais são bem discretos e não chegam a público. É comum que empresas oficiais do entretenimento evitem atritos com os consumidores/comunidades, pois isso resulta em perdas de confiança, mancha a imagem da marca, entre outras questões. 

E falando de empresas japonesas e do cenário otaku como um todo é ainda mais difícil que processos judiciais cheguem ao campo penal. Normalmente é civel. Mas esse é um tópico que ainda vai ser melhor explicado no texto.

Por que a pirataria otaku ainda existe? 

Sem alongar nesse ponto do texto, a resposta para essa pergunta é mais simples do que parece. Já falamos do hábito de piratear, e isso ainda está em voga. Há consumidores que não entendem que estão consumindo pirataria, ou que estão indo contra a lei. 

Essa falta de consciência está presente em toda a cadeia que envolve direitos autorais. Quem compra uma camiseta de Bleach na Liberdade não entende que o produto que está adquirindo é fruto de pirataria. Assim como muitos fãs de música que baixavam mp3 ou baixam filmes por torrent. 

Por muitos anos as empresas oficiais tentaram punir essas pessoas mais comuns, ao invés de entender os comportamentos e os motivos para aquelas pessoas estarem fazendo aquilo. Henry Jenkins chama essas empresas (muito presentes na Europa e EUA, ok?) de proibicionistas.

Henry Jenkins, um dos precursores da cultura participativa e da convergência

São empresas que querem resolver a questão no campo jurídico, assustar pessoas e mostrar que detém aqueles produtos e somente eles podem lucrar. No entanto, essa prática foi bastante danosa para o mercado, pois até quem escrevia fanfic de Star Trek chegou a receber notificações e ser proibido de postar qualquer coisa sobre a história. 

Basicamente foram empresas que não colaboraram e não souberam discernir o joio do trigo. E pior, não resolveram o problema de fato.

No entanto, com o tempo também tivemos empresas mais espertas (as japonesas são algumas delas) que, ao invés de agir de forma proibicionista, tentaram entender e aderir aos grupos, movimentos e assim lucrar em cima de formas alternativas. Essas empresas são chamadas de cooperativistas por Jenkins. 

Praticamente todas as empresas que trabalham com cultura pop japonesa tendem para o campo cooperativista do gráfico. Isso inclui as empresas brasileiras. E é preciso deixar isso muito claro. 

O trabalho de educação e acesso à informação ainda é escasso e precisa melhorar quando falamos de alguns produtos japoneses. No entanto, essa pirataria inconsciente vai acontecer de uma forma ou de outra, portanto, ela ainda vai existir até um novo hábito comportamental vencer. 

Produtos inacessíveis

Outra questão que responde porque a pirataria otaku ainda existe é ainda mais simples: se falamos de Brasil, nosso país não tem 10% do mercado japonês de cultura pop. Temos um mercado de nicho legalizado, minúsculo. 

Uma comparação bem esdrúxula para vocês entenderem esse cenário: a quantidade de criação BoysLove no Japão é maior do que nosso mercado somando de mangás e animês legalizados no Brasil. Essa é a realidade. 

Milhares de obras nunca chegaram até aqui. Nem antigamente, nem hoje. A quantidade de criação no Japão extrapola qualquer mercado de quadrinhos ocidentais, por exemplo. É muita coisa para o Brasil captar e não tem como lançar tudo, seja animação, seja quadrinhos, filmes, novelas, musicais etc. 

Outro problema na questão de acessibilidade é que por muitos anos não tínhamos acesso aos capítulos semanais/quinzenais/mensais de forma oficial em lugar algum. Isso mudou apenas com a MangaPlus e ainda com leitura em inglês e espanhol (importante lembrar que o inglês não é exatamente a segunda língua do Brasil, então muita gente não entende). 

Com a chegada da MangaPlus alguns passos já foram dados para tornar os produtos acessíveis

Hoje a editora JBC faz o simulpub de Eden’s Zero e outras obras, lançando tudo de forma digital. Depois de acumular alguns capítulos, a JBC lança o encadernado, processo bem próximo do Japão. 

Nos animês essa lacuna foi preenchida mais cedo pela Crunchyroll, com o simulcast. Essas ações feitas pelas empresas legalizadas já ajudaram a diminuir a dependência da pirataria. 

Mas ainda assim tem obras que não ficam disponíveis aqui, não entram em catálogo algum ou sequer são cogitados. Por isso, fansubs e scans ainda têm muito trabalho a fazer no campo amador, para trazer mais acessibilidade à obras alternativas, menos mainstreams, que agradam nichos específicos (BL e yuri por exemplo). 

Eden’s Zero é um mangá simulpub da JBC e pode ser lido digitalmente através do aplicativo Kobo ou Kindle (não é preciso ter os e-readers)

Esse é um assunto delicado no meio otaku principalmente quando há discussão de residentes de países de terceiro mundo com os europeus e norte-americanos. Quem tem produtos bem mais acessíveis não olha para a situação de outras comunidades ao redor do mundo e considera todos grandes “piratas inescrupulosos que não merecem consumir otakice”. 

E essa realidade não é só brasileira. Na bibliografia também deixarei a tese do Chen Lading de tema “Strategies and Translation Practice of Anime Fansub Groups, and the Distribution of fansubs in China”, desenvolvida na Universidade de Barcelona entre os anos de 2017 e 2018. 

Ele explica a prática da pirataria na China e como a Bilibili lidou com o uso indevido de obras japonesas na plataforma. 

A Crunchyroll foi a pioneira em trazer animês simultâneos do Japão. Trabalha com One Piece, por exemplo, que atualmente está em Wano

O fim dos grandes sites não significa o fim da pirataria

Assim como no campo da música, filmes, séries e novelas, até os anos de 2010 não era muito frutífero simplesmente fechar um site através da justiça. Casos como Megaupload, Pirate Bay e Oink provaram que na morte de um, nasceram duas cabeças diferentes, em domínios e diretórios diferentes.

Os donos de sites de compartilhamento de arquivos peer to peer tinham expertise no que faziam e sabiam como proteger seus arquivos caso o pior acontecesse. No mundo otaku tivemos o caso do fim do HorribleSubs e KissAnime

Mesmo com o fechamento desses grandes agregadores de animes pirata para o Ocidente, há muitos outros lugares que ainda é possível baixar e piratear arquivos. Alguns formatos de download e criação dos arquivos ainda seguem os processos de fansubs e projetos que não lucram em cima de arquivos ilegais. 

No entanto, também é um mercado nebuloso e que irrita o Japão pois no Ocidente (vulgo Europa e América do Norte) muita coisa da cultura pop japonesa é acessível. Países como Alemanha pegam bastante no pé quanto a direitos autorais e downloads ilegais, podendo punir os usuários.

Mas em outros países isso é mais livre e dá brechas para que essa prática ainda exista. Além disso, muitas dessas grandes plataformas mantém seus catálogos apenas com o idioma inglês, por ser o idioma universal e que dá acesso a países mais isolados e que não possuem a primeira língua inglesa.

Finada Horrible Subs

Esse é o caso de toda a América Latina, países do oriente médio, Índia e de outros países asiáticos que ainda não possuem tantos artigos oficiais japoneses (como a Malásia e as Filipinas). São locais que fazem uso dos arquivos de torrents em inglês.

Alguns usam para fazerem suas traduções locais, mas outros usuários simplesmente baixam e consomem direto da legenda em inglês. Muitas das obras trabalhadas nunca chegaram nesses países oficialmente. Então tudo fica numa área cinza juridicamente falando. 

Vamos entrar neste ponto mais delicado agora. Preparem os cintos.

A guerra envolvendo os direitos autorais

Não é só aqui no Brasil que todo otaku tem dúvidas do que é legalizado ou não, o que significa direitos autorais e até onde as empresas oficiais podem ir para proteger suas licenças e combater a pirataria. 

Que fique avisado que neste tópico pude fazer algumas entrevistas com pessoas do cenário oficial da cultura pop japonesa, mas seus nomes serão fictícios para proteger as fontes de qualquer perseguição, ameaças ou exposição. Assim como as empresas em que trabalham não serão citadas. 

A onda da pirataria via Internet foi um boom tão grande a partir da década 1990 que muitas áreas do mercado não estavam preparadas e nem souberam lidar com uma comunidade tão obcecada em consumir as coisas, mas sem pagar por elas. 

E esse boom atingiu muito mais o Ocidente. No Japão a pirataria existe e é preocupante também. No entanto, há uma diferenciação bem nítida no hábito de consumo do japonês para um brasileiro, por exemplo. 

Pirataria no Japão?

A diferença é explicada por 2 motivos: comportamento e acessibilidade. 

O japonês criou o mangá. Ele começou a consumir o mangá mesmo quando ele nem era chamado popularmente de mangá. Todos os acontecimentos históricos foram importantíssimos para criar um sentimento de pertencimento e identificação. 

Todos os japoneses consumiam seus próprios produtos oficiais. Quando o mercado expandiu, tudo foi feito de forma legalizada também. Hoje, o Japão é o centro da criação de quadrinhos e animação no mundo. Eles assistem pela TV Aberta, por assinatura e têm dezenas de plataformas de streaming.

Diferente do Ocidente, que tem meia dúzia que presta atenção em anime. Diferente do Ocidente que não dá conta de publicar todos os mangás que são publicados anualmente no Japão. 

O japonês ainda tem as revistas semanais/quinzenais/mensais que são muito mais baratas para consumir e são feitas para que eles joguem fora depois. São as Magazines. 

O mercado também encontrou formas muito mais acessíveis para o japonês ler online, tanto gratuitamente quanto pago. Internamente o Japão soube lidar muito bem com a evolução da tecnologia, ainda que a pirataria também estivesse ali do lado, no outro site. 

A maioria das lojas virtuais de mangás possuem leitor online, assim como o kindle, Kobo (que é japonês) e aplicativos das próprias editoras. São muitas possibilidades de consumir legalmente que nenhum ocidental ou latino conhece, o que facilita a não pirataria. 

O Japão soube aproveitar as tecnologias para criar acessibilidade ao seu povo. E isso foi ótimo. É a opinião também da Associação de Cartunistas do Japão, que afirmou, em entrevista para o Japan Times, que é “verdadeiramente maravilhoso” mais pessoas poderem ler quadrinhos em computadores e telefones celulares. 

Mas, segundo eles, alguns piratas alimentaram um ecossistema de negócios que devastou a cultura do mangá no Japão e no mundo. 

De acordo com dados do Ministério da Economia, Comércio e Indústria do Japão, o dano feito por sites piratas de mangá no mercado de mangás domésticos (encadernados) bateu ¥50 bilhões (pouco mais de U$480 milhões). Nos EUA, o dano é ainda mais severo: uma estimativa de ¥1.3 trilhão (mais de U$12 bilhões). 

A mesma facilidade de consumo vale para as lojas da Nintendo, roupas e artigos de decoração de cultura pop, assim como música. Mal temos acesso às músicas asiáticas no Brasil de forma legalizada, mas o japonês mesmo tem tudo nas mãos a um clique e de forma legalizada.

Falando de música, a Scene, o grande canal do IRC dos anos 2000, tinha pirataria de música japonesa também, pois era algo considerado extremamente raro e trazia status gigante para a RNS. 

“A presença do RNS no Japão era obrigatória, pois havia álbuns lançados no país uma ou duas semanas antes da data de lançamento americana. E, mesmo quando os lançamentos eram simultâneos, as edições japonesas costumavam conter raridades em faixas bônus que atraíam os colecionadores da Scene. Tai [administrador do canal pirata] contava com ‘kew21’ e ‘x23’ – um expatriado e um nativo – para fornecer o material.” (WITT, p. 131, 2015)

O Japão se preocupa com a pirataria dentro do seu próprio jardim para encontrar uma solução internacional, que é o grande cerne da questão. 

Ainda as empresas japonesas trabalham muito mal suas licenças e imagem para o mundo, o que atrapalha bastante de termos coisas oficiais e de forma direta e bem feita. Fica o exemplo básico da própria Nintendo. Mas as coisas estão mudando. 

O que são direitos autorais

No Brasil é a Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 que regulamenta a Propriedade Intelectual e segue a definição da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI). Como as mídias culturais costumam ser muito exportadas, os países como um todo seguem uma cartilha internacional referente aos direitos autorais, mas também respeitando algumas especificidades nacionais.

Sabendo disso, a Propriedade Intelectual está divida em duas categorias:

Propriedade Industrial: categoria que inclui patentes, marcas, desenho industrial, indicação geográfica e proteção de cultivares.

Direitos Autorais: categoria que abrange os direitos de trabalhos literários e artísticos, símbolos, imagens, esculturas, programas de computador, internet, entre outros.

Como estamos falando de anime, mangá e direitos de imagem/licença de marca japonesa, o que importa para a gente são os direitos autorais. 

Créditos: UFSC

Para entender como as empresas combatem a pirataria, é preciso antes de mais nada entender que a lei não diferencia os produtos piratas. Fansub é pirataria. Fanart é pirataria. Fanfic infringe a lei por usar universo e personagens já estabelecidos por um autor/marca. 

Vender canecas, chaveiros, camisetas, almofadas e qualquer outro produto com imagens de obras com direitos autorais, sem autorização, infringe a lei e é pirataria. E o que significa uma obra ter direito autoral?

Simples, se uma obra foi criada por uma pessoa/marca/empresa, e essa pessoa se nomeou detentora daquele trabalho/projeto artístico, automaticamente o autor já está protegido por direitos daquela obra. 

E nesse caso, Ricardo Sevecenco lembra que os ataques piratas a obras menores, autores individuais e empresas pequenas são os mais prejudiciais de todo o mercado intelectual. 

“O artista quer criar sua obra, normalmente ele não se preocupa em contratar uma assessoria jurídica para lhe auxiliar e quando percebe tem sua obra disponibilizada ilegalmente, sem os devidos créditos, sem receber os direitos autorais. É completamente diferente de uma grande gravadora que tem uma estrutura para gerenciar essas questões, atuando de forma efetiva”, explica. 

Os artistas de forma geral podem registrar obras no campo administrativo, mas como é muita coisa burocrática para processar, um escritório de advocacia focado em propriedade intelectual pode fazer consultoria e recomendar o registro das obras perante aos órgãos competentes. 

É uma forma de oficializar e dar mais corpo aos direitos do autor/empresa, mas geralmente nem precisa de uma regulação robusta, como acontece com as patentes. O importante, Ricardo completa, é que os artistas e pequenas empresas se informem o máximo possível sobre seus direitos intelectuais. 

Mesmo em caso de pseudônimos ou mídia não publicada oficialmente estão seguras por direitos autorais de quem criou aquela obra. Por isso, qualquer pessoa individual que criou algo original está segura na lei de Propriedade Intelectual e pode entrar com recursos caso um terceiro use indevidamente sua criação. 

A única exceção de uso de imagem/obras sem autorização do autor/empresa é o domínio público. Simples assim. Hoje, com a programação, há casos de softwares de código aberto, que também não é necessário autorização para uso. 

No século passado houve muitos lobbys e batalhas políticas contra o tempo para impedir que grandes marcas caíssem em domínio público, foi o caso, principalmente, da Disney. Por isso, por lá tem uma regra de 95 anos de proteção em certas obras. 

Ratazana safada

Domínio Público 

No Brasil, uma obra cai em domínio público depois de 70 anos da morte do autor. Durante o período em vida e os outros 70 anos, cabe apenas ao autor/família utilizar, usufruir e dispor da obra literária, artística e científica.

Por exemplo, em 2014 as obras de Edvard Munch, famoso pela pintura de The Scream (O Grito) caíram em domínio público. O pintor norueguês morreu em 1944, completando 70 anos de sua morte em 2014.

O governo brasileiro tem o site Domínio Público, que é possível pesquisar todas as obras que caíram e podem ser usadas sem autorização. Pesquisando você pode achar até os volumes originais em inglês de O Capital, de Karl Marx. 

No entanto, nos EUA é diferente. Por lá, todas as obras que foram publicadas antes de 1924 já estão em domínio público. Obras que foram publicadas depois de 1923, mas antes de 1978, estão protegidas por 95 anos pelos direitos autorais de acordo com a data de publicação. 

Aí sim, como no Brasil, para trabalhos publicados depois de 1977, os direitos autorais valem por toda a vida do autor + 70 anos. O primeiro dia do ano é “tradicionalmente” o Dia do Domínio Público e as obras podem ser usadas livremente por qualquer pessoa, sem restrições ou necessidade de pagamento ou autorização. 

Há algumas regras mais específicas e detalhes por área do entretenimento. Músicas, por exemplo, tem restrições e outras regras. No geral, as obras literárias que usam mais a regra dos 95 anos e 70 anos depois da morte do autor. 

Caso queiram mais informações sobre domínio público, a universidade de Cornell fez um quadro bem intuitivo sobre as regras de domínio público nos EUA e que acabam valendo para muitos outros lugares. 

Peso entre piratarias

Como qualquer criação não autorizada recai para uso indevido da obra/imagem, como as empresas oficiais lidam com as diferentes formas de fazer pirataria? De acordo com Ezequiel, que trabalha profissionalmente no meio otaku, a melhor forma de lidar é com educação. 

Para ele, “derrubar sites, fansubs, mandar notificações e processar é enxugar gelo”. Ezequiel também explicou que empresas brasileiras da área da cultura/entretenimento (não só de otakice) acabam fazendo ações mais acintosas pois precisam prestar contas com as marcas estrangeiras. 

“As empresas possuem licenças de grandes nomes da cultura pop, e precisam mostrar que os direitos autorais estão seguros e sendo bem cuidados. E também precisam no fim do ano mandar um balanço de tudo e, se não há nenhuma prática de combate, enfraquece a parceria”, contextualiza Ezequiel.

Caso vocês não tenham visto a live de Mangás Digitais no YouTube do Papo Nerd Com Elas, é um bom momento para lembrar do que a própria Marina Shoji, CEO da JBC, diz nela. “Acho que pirataria nunca vai acabar, o que podemos fazer é deixar tudo o mais acessível possível”. 

Essa visão de Ezequiel e Marina é compartilhada em partes com o advogado especialista em propriedade intelectual, Ricardo Sevecenco. Ele explica que, ainda que tudo esteja numa área que infringe os direitos autorais, é preciso escolher as batalhas que serão enfrentadas, pois custear tudo isso, juridicamente falando, é caro. 

“Infelizmente a pirataria é pulverizada, o que dificulta a repressão, mas sem dúvida, escolhe-se as que geram mais prejuízo, pois é um eterno ‘enxugar gelo’”, explica.

Assim sendo, sim, as empresas diferenciam os tipos de pirataria no Brasil e fazem ações para as que realmente vão lesar financeiramente e mais prejudicar. Por conta disso, artistas de fanarts, cosplayers, criadores de fanfics e até fansubs/scans não são exatamente o foco dessas empresas. 

E por que? Bom, já explicamos no texto que as criações alternativas da comunidade de fãs normalmente ajudam no engajamento daquela obra, podendo ser uma grande ajuda orgânica na hora de conquistar novos públicos consumidores que vão comprar oficialmente. 

O foco está naquelas empresas que realmente lucram e enriquecem, ou mesmo se fazem de empresas legalizadas que querem ter vínculos financeiros com consumidores (como foi o caso da mangasPROJECT e grandes lojas virtuais de roupa/artigos de decoração). 

No texto focamos muito em empresas brasileiras que trabalham exclusivamente com tradução/edição de animes e mangás, mas tem outras empresas que detém licenças de imagem e, com isso, podem fazer produtos oficiais. 

Vamos dar um exemplo: você comprou um moletom com uma estampa de A Viagem de Chihiro, do Studio Ghibli na C&A? Isso quer dizer que aquela roupa passou por todos os processos legalizados para estar ali para compra. 

Uma empresa que detém os direitos de imagem desse filme em específico aqui no Brasil, não só pagou os royalties ao estúdio japonês, como também fez uma parceria comercial com uma grande loja de roupas.

Um moleton feito por uma loja virtual X Nerd de Chihiro com todas as outras protagonistas mulheres do Studio Ghibli, não tem essas autorizações para vender um produto e lucrar em cima dele. É por isso que nesse caso, sim, empresas podem acionar a justiça para que essas vendas, no mínimo, cessem. 

Ainda é direito dos autores/empresas

É importante lembrar que todas as editoras brasileiras e empresas que trabalham com animês podem notificar todos os fansubs e scanlations judicialmente, sejam eles éticos ou não. É direito delas. 

A diferença é que as notificações, caso sejam cumpridas, não têm finalidade de sanções, ou seja, levar ao campo cível com processos que pedem retorno financeiro pelos danos causados. 

E aí fica também algo bem didático sobre combate a pirataria: incômodos menores e gente pequena nunca serão processados no campo penal, pois o prejuízo causado é minúsculo e no fim, a empresa toma ainda mais prejuízo caso um processo deste tipo se torne público. 

Se uma empresa brasileira detém os direitos de uma obra japonesa, normalmente basta uma notificação para que sites piratas parem de disponibilizar suas obras amadoras. 

Agora algo importante: empresas originárias, ou seja, japonesas, podem fazer uma força conjunta com diversos países para coordenar uma ação contra pirataria. E o Brasil pode entrar nessa história também. 

Porém, é preciso colocar muita coisa na balança e normalmente as empresas de outras áreas do entretenimento não entenderam as comunidades de fãs e só prejudicaram o acesso à obras e lutaram em batalhas inúteis. O que serviu de exemplo.

Ricardo ainda explica que um movimento das empresas brasileiras tem acontecido para fazer um combate mais objetivo. “Percebemos um movimento mais coordenado de grandes empresas que, juntamente com as polícias, têm conseguido localizar, apreender e processar organizações criminosas especializadas em pirataria”, ressalta. 

É difícil (não impossível) que pessoas físicas e individuais acabem sendo pegas nesses tipos de coordenações, pois no fim, a raiz do problema é outra. No geral, escritórios e assessorias legais ajudam autores, artistas e empresas nos seguintes pontos da lei de direitos autorais: 

  • Análise de violações: plágio, reprodução indevida, comercialização de obras sem autorização, questões relativas à atribuição e outros direitos morais do autor, desrespeito a licenças específicas (Creative Commons, General Public License-GPL, e afins);
  • Assessoria para elaboração, revisão e análise de contratos de licença de uso de marcas, acordos de coexistência, co-branding, autorização para uso de imagens de produtos.

Aprendendo com erros do passado (ou não)

Casos como o Oink foram bem didáticos para as empresas perceberem o que devem levar ao campo penal: só gente muito grande e que enriqueceu em cima de pirataria. A imagem das gravadoras musicais ficaram manchadas na história, por exemplo. 

Não só por conta do Oink, mas porque as gravadoras foram extremamente ignorantes para se adaptar ao novo universo da Internet e entender os próprios consumidores. Ao mesmo tempo, no campo político e legal, a burrice apenas continuou. 

“Inicialmente, o computador ofereceu amplas oportunidades de interação com o conteúdo das mídias e, enquanto operou nesse nível, foi relativamente fácil para as empresas de mídia controlar o que ocorria. Cada vez mais, entretanto, a web tem se tornado um local de participação do consumidor, que inclui muitas maneiras não autorizadas e não previstas na relação com o conteúdo de mídia”. (JENKINS, p.190, 2006)

Henry Jenkins fala bastante dos acertos e erros do mercado da cultura pop para lidar com consumidores assíduos que querem criar suas versões, debater e espalhar obras favoritas para mais pessoas.

“Embora a nova cultura participativa tenha raízes em práticas que, no século 20, ocorriam logo abaixo do radar das indústrias das mídias, a web empurrou essa camada oculta de atividade cultural para o primeiro plano, obrigando as indústrias a enfrentar as implicações em seus interesses comerciais”. (JENKINS, p. 190, 2006)

Vamos dar alguns exemplos aqui que Stephen Witt falou em seu livro “Como a música ficou grátis” de como a indústria fonográfica lidou juridicamente com essa nova modalidade de participação e pirataria. 

A primeira burrice da indústria da música foi concluir que só no campo jurídico penal se resolveria a pirataria, ou se cobrassem no bolso de pessoas que sequer entendiam o que tinham feito. Sim, é preciso deixar isso claro: há pessoas que pirateiam sem saber que aquilo é errado. 

Primeiro a Seagram, uma gravadora que chegou a comprar a PolyGram nos EUA em 1998. No relatório de prospecto e perigos do mercado estava uma análise sobre a pirataria crescente na época. 

“Eles desenterraram uma análise de dezesseis anos antes dos efeitos colaterais da sensação do gravador de fita cassete, conduzida pelo economista Alan Greenspan, que em 1998 se tornara presidente do Federal Reserve, Banco Central americano. […] Sua análise culpava a pirataria em fitas cassete pela queda dos lucros, em seguida considerando várias estratégias de precificação […]. Todavia, usando técnicas econométricas avançadas, descobriu que nem o aumento, nem a redução dos preços funcionariam”. (WITT, p. 79, 2015)

Todos os papelões da Seagram e a compra da Polygram valem a pena ser lidos, sério!

Acontece que na época dos anos 90 as empresas não consideravam a comunicação direta e informal com o público com o advento da Internet. Então achavam ótimo prender piratas. 

“Em vez disso, Greenspan concluiu que o único modo de reverter a queda nas vendas era uma campanha agressiva para que se cumprisse a lei contra os piratas. Em outras palavras, o sucesso do capitalismo dependia de uma intervenção vigorosa do Estado.” (WITT, p.79, 2015)

E foi exatamente isso que aconteceu nos anos seguintes. Doug Morris, em 2002 e 2003, dentro da Universal, encabeçou uma série de ações de combate à pirataria focando em indivíduos que compartilhavam arquivos diretamente. Esse projeto da Universal, junto com a RIAAA (Recording Industry Association of America) foi chamado de Hubcap. 

“Contudo, o maior opositor [ao projeto] foi alguém inesperado: a diretora do RIAAA. Para Hilary Rosen, processar quem compartilhava arquivos era uma política desastrosa, que com certeza irritaria uma série de discussões acaloradas e poderia manchar a reputação da indústria por décadas. […] ela defendeu sua posição e deixou claro que sob nenhuma circunstância ficaria à frente do Projeto Hubcap.” (WITT, p.145, 2015)

Mas o projeto aconteceu. 

“O Projeto Hubcap foi colocado em prática, e os primeiros processos foram abertos. Os alvos eram 261 indivíduos, e a RIAAA exigia pagamento de até 150 mil dólares em danos por cada música.” (WITT, p. 145, 2015)

E é claro que a medida seria um desastre jurídico, administrativo e o público simplesmente caiu matando em cima da Universal durante anos, se negando a comprar e consumir qualquer CD oficialmente. 

“A ideia era punir apenas os piores infratores, mas, devido a fatores técnicos, não foi assim que funcionou. O Napster e seus clones tinham como padrão tornar a biblioteca pessoal de um usuário disponível para upload. Os usuários mais espertos muitas vezes desabilitaram essa função, o que fazia com que muitos dos chamados ‘piores infratores’ não passassem de novatos ignorantes”. (WITT, p.145, 2015)

Doug Morris foi um dos homens mais ricos (senão o mais) da indústria fonográfica. Fez bostas mas também acertou em alguns momentos. Créditos: Charles Sykes

O resultado jurídico foi então penalizar pessoas comuns que, além de não serem uma real ameaça, foram prejudicadas a níveis imensos para o resto da vida. 

“[…] para aqueles fora da indústria fonográfica, o Projeto Hubcap era arbitrário e violento. A RIAAA parecia estar perseguindo pessoas de forma aleatória, pegando endereços de IP de servidores peer-to-peer, como o Kazaa e o LimeWire, e intimando provedores de internet a fornecerem informações sobre seus clientes. Seus alvos eram mães solteiras, famílias que não tinham computador, idosos, crianças, desempregados e pessoas falecidas há meses”. (WITT, p.145, 2015)

Só em 2005 a RIAAA entendeu que as pessoas não tinham noção que estavam infringindo a lei. Mas o estrago estava feito na opinião pública e apenas artistas e profissionais da indústria fonográfica apoiavam as medidas jurídicas. 

“O verdadeiro problema era o público. Os consumidores estavam infringindo a lei. Pagavam centenas de dólares por iPods, mas não estavam dispostos a dar nem um centavo para a indústria fonográfica. De certo modo parecia que ainda não entendiam que compartilhar arquivos era ilegal. Buscando orientá-los e educá-los, no fim de 2005 a RIAAA entrou com ações educativas contra 16.837 pessoas.” (WITT, p.174/175, 2015)

Além disso, houve o caso absurdo de Jammie Thomas de Brainerd, que foi considerada culpada por violação dos direitos autorais de 24 músicas que baixou no Kazaa em 2007 (ano de queda de 50% nas vendas dos CDs). O júri decidiu que ela devia à indústria fonográfica 9.250 dólares por música, totalizando U$222 mil. 

“Thomas, mãe solteira de dois filhos que vivia em um pequeno apartamento alugado e trabalhava em uma reserva indígena ojíbua, iria à falência com o julgamento. […] O contraste era mais absurdo se Thomas e um pirata de verdade fossem comparados.” (WITT, p. 206, 2015)

No Japão esse cenário não é nada diferente quando falamos de indústria da música. Aqui vale lembrar da Japanese Society for Rights of Authors, Composers and Publishers (JASRAC), que processa pessoas por postar letra de música no Twitter, assim como quer que as escolas de música paguem copyright

Revistas acadêmicas

O mesmo aconteceu com algumas revistas acadêmicas de grande renome, como a Elsevier e outras grandes revistas acadêmicas dos EUA e Europa. Há alguns textos muito mais explicativos que demonstram todas as questões referentes aos “piratas do conhecimento”, como Aaron Swartz e Alexandra Elbakyan.

Aaron Swartz foi um importante hacktivista estadunidense que teve uma função fundamental para criação de acessibilidade do conhecimento às pessoas de países diversos que não tinham acesso a grandes periódicos. 

Aaron Swartz

Os periódicos mais conhecidos no mundo, que remontam desde o início do século XX são: Reed-Elsevier, Wiley-Blackwell, Springer, Taylor & Francis e American Chemical Society. Dos anos 70 até 2020 são as revistas oligopólios do conhecimento acadêmico, limitando papers e artigos científicos em outros lugares. 

Mas uma revolução aconteceu em meados dos anos 2000 justamente com os 2 ativistas citados. Ainda que essas 5 revistas ainda sejam os grandes nomes do meio, foram os 2 programadores que sacudiram o setor e tornou o conhecimento totalmente acessível, ao custo de, claro, infringir os direitos autorais. 

Aaron Swartz, nas palavras de Andressa Soilo.

“Engajou-se, ainda adolescente, na criação da arquitetura das licenças Creative Commons (CC), foi um dos criadores formato de distribuição de conteúdo RSS e da rede social Reddit, ajudou a construir uma biblioteca gratuita no Archive.org, e fundou a Demand Progress, organização ciberativista famosa, sobretudo, por se opor aos projetos Stop Online Piracy Act (SOPA) e Protect IP Act (PIPA), nos Estados Unidos”  

Em janeiro de 2011, Swartz foi preso nos EUA, pois foi pego baixando 4,8 milhões de documentos científicos e literários pela plataforma JSTOR, através da rede do MIT (Massachussetts Institute of Technology). Ele nunca distribuiu os arquivos, mas isso foi o bastante para ele receber uma pena de 50 anos de prisão e US$ 1 milhão em multas.

Swartz se suicidou em 2013 por toda essa perseguição política e jurídica, e também porque tinha depressão profunda.  

Já Alexandra Elbakyan, em 2007, criou o Sci-Hub, principal ferramenta de acesso à artigos científicos que burlam os paywalls e permite que pessoas ao redor do mundo possam acessar o conhecimento. Ele era do Cazaquistão e sentiu na pele os problemas de acesso ao conhecimento, pois também era programadora de alto nível. 

Até hoje Alexandra é vista como heroína para uns, vilã para outros. A revista mais conhecida do mundo, a Elsevier, travou uma briga judicial com a Alexandra, e ganhou. Isso aconteceu em 2017, quando o juiz ordenou uma indenização de 15 milhões de dólares para a editora. 

“No entanto, Elbakyan nem ao julgamento foi. É importante destacar que ela está fora do alcance da jurisdição dos Estados Unidos onde foi dada a sentença” (MARQUES, 2020)

Essas duas figuras lapidaram o debate do “open access” no mundo inteiro, tornando possível a criação de diversas bibliotecas e repositórios na Internet de acesso livre, ou seja, gratuitos. 

Alexandra pleníssima

O que o Japão está fazendo para combater pirataria otaku

Ao contrário das indústrias dos EUA e Europa, que começaram o combate desenfreado nos anos 2000, o Japão demorou para estabelecer regras e ações. Os motivos para isso são um pouco mais óbvios: o mercado internacional de cultura pop japonesa demorou um tempo para se consolidar. 

Para vocês terem uma noção, em 1996 o Studio Ghibli fez uma parceria com a Disney, via Buena Vista International, para que os filmes japoneses chegassem oficialmente em todo o ocidente. Foi uma negociação prejudicial para o Studio Ghibli, que ficou nas mãos da Disney, que mandava e desmandava como e onde os filmes passariam.

E é claro que a Disney daria prioridade para seus próprios filmes, e não para um estúdio japonês que tinha grandes tendências de ganhar prêmios e desbancar as animações estadunidenses. A Disney chegou a cortar partes dos filmes e foi prontamente repudiada pelos grandes diretores do Studio Ghibli, como Hayao Miyazaki e Toshio Suzuki. 

De fato a Disney limitou o acesso dos filmes para o cinema e permitiu os filmes saírem apenas em DVD para audiência caseira. No fim, não foi um bom negócio para o Studio Ghibli, ainda que a Disney tenha aprendido a vender melhor os filmes japoneses depois de Viagem de Chihiro (2001), mas longe dos sucessos que essas mesmas obras tinham no Japão. 

Sendo assim, o crescimento da cultura pop japonesa nos últimos 30 anos passou por várias turbulências. Foram empresas tentando criar um plano de negócios que pudesse atingir e agradar os ocidentais e, no meio disso, tivemos criações de serviços específicos (como a própria Crunchyroll). 

Enquanto no Japão os filmes do Studio Ghibli são sucessos absolutos, no Ocidente o estúdio foi tratado que nem figurante

Mas muitos planos falharam. Foi tentado adaptar as revistas de mangás semanais para o Ocidente, não deu certo em nenhuma outra parte do mundo. O cinema japonês é um dos maiores do mundo, mas nunca conseguiu chegar ao Ocidente como deveria. Essa situação se assemelha a outras indústrias, como Bollywood, Coreia do Sul e até países como a Rússia. 

No fim das contas, Hollywood controlava as cartas ao redor do mundo. Um país estrangeiro ganhar o Oscar, por exemplo, é tido como um milagre. Viagem de Chihiro conseguiu o feito, e Parasita, em 2020, repetiu. 

Isso significa que, na prática, empresas japonesas tentaram suas trocas comerciais com outros países antes de pensar em combater a pirataria como eles. Afinal, antes de tentar repudiar piratas, era preciso entrar nos mercados. 

E isso só se consolidou mais depois de 2010. A Crunchyroll nasceu em 2006 nos EUA e comeu o pão que o diabo amassou para criar um serviço legalizado, bem parecido com o que aconteceu com a Bilibili na China. 

Logo antiga para dar aquela nostalgia boa

E só depois de alguns anos que as coisas começaram a dar certo. Por isso, apenas nos últimos 10 anos que a indústria japonesa, em parceria com políticas públicas e projetos de combate à pirataria, passou a levar mais a sério o assunto de direitos autorais. 

Ações no Japão

Em abril de 2017, o Japão teve a primeira operação grande de combate à pirataria ao fechar um dos principais sites piratas do país. Segundo a Japan Times, o site criado em 2015 chegou a ter 160 milhões de acessos por mês na época mais badalada. 

“Estima-se que o site tenha causado mais de ¥ 300 bilhões em danos financeiros aos detentores de direitos autorais. O dono de toda a operação do site, que foi colocado na lista de procurados por violar a lei de direitos autorais, foi recentemente [em 2018] detido nas Filipinas.”

Em 2018 surgiu a STOP! KAIZOKUBAN (“parem com as edições piratas”, em tradução livre). A campanha foi uma tentativa de combate à pirataria, promovida por grandes editoras japonesas, como Kadokawa, Kodansha, Shogakukan e Shueisha (basicamente as que mais publicam mangás por lá).

No mesmo ano, o governo japonês anunciou a queda de um dos principais sites piratas japoneses, o Mangamura. Mas, de acordo com os administradores do site, eles decidiram fechar totalmente o diretório e não foi a polícia que os parou. 

Ainda em 2018, o governo passou a discutir o assunto em agosto, através do Ministro de Assuntos Internos e Comunicação com a Agência de Assuntos Culturais. A ideia de bloquear os sites piratas via provedores infringia a constituição e as ideias para uma nova legislação de direitos autorais e também ia na contramão de tudo que já havia sido construído na Internet japonesa. 

Na época, de acordo com editorial do Japan Times, “especialistas alertaram que a mera ideia de que as pessoas possam ser punidas por baixar conteúdo pode desencorajá-las de usar o material para pesquisas privadas ou atividades criativas.” 

Em um país como o Japão que tem muita comiket, Pixiv e paródias, essas medidas de punição poderiam trazer estragos também no mercado oficial.  

A cultura pop japonesa é tão vasta e tão consumida por japoneses, que não tem como controlar tudo. Créditos: Shueisha

Mesmo assim, indo na mesma linha do que a indústria fonográfica estadunidense queria, em março de 2020, uma legislação de direitos autorais foi aprovada. De acordo com a lei, a ideia é agir como qualquer outro país europeu ou estadunidense, pois “qualquer um que deliberadamente baixar arquivos ilegais de mangás, revistas ou trabalhos acadêmicos está sujeito a ser punido”. 

Não sabemos como o Japão vai lidar na prática com essa lei, que entrará em vigor no início de 2021. O que se sabe é que o país agora está se preocupando mais com o assunto e, com uma legislação própria, poderá tomar medidas internacionais seguindo o que faz na própria casinha. 

Ações brasileiras 

No Brasil também temos operações da polícia e de empresas, que por vezes se unem para combater a pirataria. Algumas ações já foram citadas aqui no texto, mas é importante que o combate por aqui não seja simplesmente ir na justiça. 

Conversando com Ezequiel, que comentou que a educação é o principal foco no Brasil para combater a pirataria, há inúmeras outras táticas para tornar o mercado mais eficiente e também construir uma reflexão em conjunto com consumidores.

“É possível criar muitas coisas, por exemplo, com o marketing digital, para que a comunicação entre empresa e público seja mais transparente, empática e próxima. Tem as redes sociais, tem anúncios no Google/Facebook/Instagram, tem criação de conteúdo SEO e otimização nos sites, tem e-mail marketing etc”, explicou. 

É a partir desses trabalhos internos que há possibilidades de combater aquele hábito antigo e tão arraigado de consumir pirataria. Basicamente a resposta, segundo Ezequiel, é tornar o acesso à informação de fato fácil. E somente nessa área as empresas já têm muito trabalho para melhorar. 

Inclusive, Ezequiel também salientou que hoje é possível explorar a ideia do “conforto” de consumir oficial. Alguns hábitos mudaram e não é todo mundo que tem a mesma paciência de ficar procurando torrent se basta pagar X e receber todo o serviço de uma plataforma de streaming. 

“Hoje as empresas conseguem trabalhar em cima desse diferencial de negócio. Não dá trabalho algum, é só assinar, abrir e assistir. Nos mangás é parecido também com os simulpubs”, ressaltou. 

Para Ricardo Sevecenco, apesar de projetos de conscientização, educação e acesso serem fundamentais, há ações no campo jurídico que ainda são importantes e devem ocorrer. 

“Se o brasileiro entende que uma obra, seja uma música, um quadro, um vídeo, uma gravura não tem valor, isso só demonstra o quanto não reconhecemos o valor da criação intelectual. No fim, a pirataria só desestimula a criação e por isso é importante algumas ações mais efetivas em paralelo à criação de outras formas de consumir ou ‘regulamentar’ um uso”, reitera. 

Ezequiel também lembra que hoje as empresas também têm oportunidades no campo físico da coisa, ou seja, de planejar eventos presenciais e também participar de outras iniciativas, como o próprio Anime Friends, que hoje está mais sério em relação a trazer empresas oficiais. 

E a própria CCXP é uma ótima oportunidade de apresentar os produtos japoneses para nerds e fãs de cultura pop geral. E as empresas precisam entender e abocanhar esses espaços para criar confiança com o consumidor e com as empresas japonesas. 

Nesse ponto, importante lembrar que a JBC faz eventos próprios desde 2015, com o Henshin+, a NewPOP tem o NewPOP Day todo ano, e a própria Crunchyroll vive fazendo mostras e palestras sobre animês que estão no catálogo brasileiro. 

A Angelotti, que detém direitos de imagem de uma série de franquias japonesas e tem autorização legal e comercial para criação de projetos e produtos dessas marcas, também se pronunciou sobre o combate à pirataria em 2020.

E por fim, mas não menos importante, temos a operação mais recente de combate à pirataria, chamada de Operação 404, da polícia civil. De acordo com o site “The Hack” a segunda fase da operação completou “5 mandados de busca e apreensão em cerca de 10 estados brasileiros, além da suspensão e bloqueio de 252 sites e 65 aplicativos de streaming pirata”.

É comum que nessas operações, países vizinhos e empresas estejam também envolvidos na investigação. Nesse ponto, Sevecenco lembra que as ações e operações de combate á pirataria também dependem das próprias detentoras dos direitos. 

Uma empresa X argentina pode fazer algo completamente diferente de uma empresa Y norueguesa, por exemplo. Tudo depende de como dói no calo de cada uma. O mesmo acontece com autores independentes, artistas etc. Eles delimitam o que pode ou não ser feito com sua obra

Portanto, se hipoteticamente Neil Gaiman diz que podem baixar pirata e disponibiliza o link para tal, ele lida dessa forma com o assunto. O Jeff Lemire poderia fazer totalmente diferente e ainda estaria tudo bem, afinal, ele é o dono de suas obras. 

Aqui fica o lembrete de que o autor de Sunstone, Stjepan Šejić, é desses autores que disponibilizam suas obras de graça nas suas redes sociais. 

Sunstone é uma obra do Stjepan sobre BDSM e É INCRÍVEL

Combatendo a desinformação

De forma geral, todos os entrevistados para esse texto disseram que a desinformação sobre direitos autorais é colossal. E de forma generalizada. Empresas, autores e consumidores não sabem diferenciar produtos e não entendem os direitos autorais. 

No entanto, nos últimos anos tem acontecido passos positivos para isso mudar. E só foi possível democratizando acesso das obras. O que isso significa? Foi com a vinda de mangás digitais, com entrevistas e conteúdos explicando o que é licenciamento, criando um mercado legalizado que não existia, dublando séries, chegando o MangaPlus para o Ocidente etc. 

Práticas recentes de grandes empresas tiveram que ser revistas para abarcar os direitos dos autores e criadores, como o caso da Twitch Sings e do Tik Tok, e isso antigamente demorava muito mais para acontecer (como aconteceu com o YouTube por anos até chegar o Vevo).

“Acredito que essa desinformação está mais ligada à falta de valorização da criação intelectual, mas tenho percebido uma mudança significativa, onde um fotógrafo ou um compositor (que conhece a lei e seus direitos) estão buscando orientação jurídica”, ressalta Ricardo Sevecenco.

Para evitar gafes

Se organizar internamente e planejar ações de combate é fundamental também para que não haja erros e injustiças nos próprios tribunais. Em 2010, na prisão de Allan Ellis, dono do Oink, o promotor não tinha noção do que acontecia no canal privado de downloads e uploads de música e ainda assim foi o profissional escolhido para representar o governo britânico.

“O representante do governo foi o promotor Peter Makepeace, um enfurecido modelo da pompa britânica de peruca cuja principal tática foi colocar Ellis no banco das testemunhas e chamá-lo repetidas vezes de mentiroso. No entanto, durante seu ataque, por vezes ele deixou transparecer um entendimento limitado dos fatos do caso e em certos momentos parecia quase orgulhoso dessa ignorância.”

Essa limitação jurídica nos trouxe um diálogo incrível, digno de pérola da Internet

“[…] depois de ter sido informado de que o site havia migrado para o Linux, iniciou o seguinte diálogo:

Makepeace: Onde eles ficavam localizados?

Ellis: Acho que ficavam no Canadá. Não sei onde.

Makepeace: Um lugar chamado Linux?

Ellis: Não sei.” (WITT, p. 221, 2015)

Lembrando que Ellis foi inocentado. 

Aqui no Brasil, as ações jurídicas são bem discretas, mas teve um caso em particular que escancarou certos despreparos. O acontecimento foi o Guia de Quadrinhos receber intimidação do escritório que “representaria” a Panini Comics no Brasil. 

Depois do dono do Guia de Quadrinhos ir a público e dizer o quanto isso era absurdo, a Panini pediu desculpas e disse que foi um engano

A ação era notificar scans e sites que disponibilizavam downloads de obras licenciadas pela Panini no Brasil. O Guia dos Quadrinhos é um site de catálogo de quadrinhos, como um My Anime List de quadrinhos que foram lançados no Brasil. 

E enfim, a pirataria ainda é um tema delicado e nenhum lugar do mundo encontrou uma solução definitiva (e talvez nem encontre), mas definitivamente muitas coisas foram aprendidas com o passar dos anos. 

Conclusão

A grande conclusão deste assunto, na minha humilde opinião, é que os consumidores brasileiros podem sim ter mais consciência do que consomem, porque consomem e como consomem. 

São reflexões importantes para sermos justos com autores e indústrias que não chegam nem perto da hollywoodiana, como é o próprio caso das Webtoons sul-coreanas e chinesas. É preciso medir também os atos de piratear. 

E também fica a consciência de que fora do espectro oficial, os consumidores não existem. A pirataria torna tudo um monte de números que são valores perdidos pela indústria. Quem consome pirateado não está dentro de estatística alguma de nenhuma empresa do mundo. 

Se não está em estatística, diversos autores/empresas não olham o Brasil (e qualquer outro país) como uma possível oportunidade de negócio. Então o cenário fica extremamente limitado. É possível consumir a obra, mas nunca conversar com o autor, nunca tê-lo em evento algum, nunca entrevistá-lo, nunca criar um vínculo. 

E também fica limitado em produtos extras. Se sua obra favorita pirata não for um sucesso estrondoso no Japão, você nunca verá nem um diário tematizado da obra sendo feito. É algo a se pensar também. Você quer consumir a obra ou ter um ambiente massa que você pode não só compartilhar seu gosto em eventos e palestras com semelhantes, mas também ter objetos que demonstram esse amor? 

São apenas reflexões para você, leitor, pensar antes de dormir, enquanto está comendo ou bebendo uma bela cerveja na sexta-feira. Fica também a recomendação da leitura de todos os links, artigos, teses e livros mencionados no texto, que vão ajudar em todas essas reflexões. 

[1]: Os piratas do IRC podiam ser chamados de Warez, assim como os programas crackeados. 

[2]: doujinshis e fanzines são basicamente a mesma coisa e serão tratados neste texto como o mesmo material. A diferença é que doujinshi é o termo usado em japonês para fanzines e têm mais sucesso, com um evento próprio pra eles conhecido como Comiket. Muitos autores japoneses começam por eles para depois conseguirem contratos com as editoras. Já a fanzine é o termo usado no Ocidente. Muitos artistas europeus, hispânicos, lations e norte-americanos criam Fanbooks de obras já aclamadas por aqui e conseguem oportunidades para criar quadrinhos na Marvel, DC, Dark Horse, Image, entre outras editoras. 

[3]: Para entender mais sobre os códigos de honra e ética de criadores nas comunidades de fãs, ler o livro “Os Invasores de Texto” de Henry Jenkins. Importante também deixar uma observação: todos os materiais feitos por fãs para fãs e de forma amadora, de alguma forma, infringem a lei dos direitos autorais, portanto, legalmente, são todos produtos piratas

[4] Um caso interessante foi o do Anitube, um site pirata popular que o Japão tentou derrubar, não conseguiu, e acabou sendo vendido para investidores japoneses. 

Bibliografia

(os links usados durante o texto para embasar informações não constam aqui)

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo, 2009 (original 2006). Aleph.

WITT, Stephen. Como a Música Ficou Grátis: o fim de uma indústria, a virada do século e o paciente zero da pirataria. Rio de Janeiro, 2015. Intrínseca.

LADING, Chen. Strategies and translation practices of anime fansub groups, and the distribution of fansub in China. Barcelona, 2018. Universitat Autónoma de Barcelona. 

JOSEPHY-HERNÀNDEZ, Daniel E. The translation of graphemes in anime its original and fansubbed versions. Canadá, 2017. University of Ottawa. 

WANG, Dingkun. Fansubbing in China – With reference to the fansubbing group yyets. Shanghai, 2017. Shangai Jiao Tong University.

MELLO, Anna Vieira, Eloy S. Fansubbing e streaming no Brasil: um panorama do consumo de animes legendados por fãs. Porto Alegre, 2019. Universidade do Vale dos Sinos. 

MASSIDA, Serenella. The itallian fansubbing phenomenon. Sassari, 2011. Università Degli Studi Sassari. 

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