Um dos termos mais importantes para o storytelling, ou seja, desenvolvimento de uma história, é o worldbuilding. Muito comum em histórias do gênero fantasia, o autor busca criar o mundo onde vai passar sua história. Assim, o autor molda seu mundo e suas regras, tais como a física deste mundo criado, sua história, geografia, a população, cultura, dentre outros elementos. Em busca de criar um universo grandioso, podemos analisar como o worldbuilding é pensado no anime de One Piece.

Ao se criar um universo imaginário, a prática do worldbuilding auxilia na ação de escrever uma história. Só que, às vezes, ao criar este universo para a história, o autor eventualmente pode não dar enfoque total à elementos e regras criados, mas sim focar em elementos da narrativa, como seus personagens. Entretanto, mesmo talvez não sendo o foco da história, a criação deste mundo ajuda a dar consistência à história, assim influenciando a narrativa proposta. 

Podemos citar obras como Harry Potter de J.K. Rowling, Crônicas de Gelo e Fogo de George R.R. Martin, Senhor dos Anéis de J.R.R. Tolkien, dentre outras obras que nos apresentam um worldbuilding fantástico, que foram muito bem pensados e construídos. Falando mais especificamente sobre a criação de mundo, a escritora Kate Messner publicou uma videoconferência, onde ela explica sobre como os mundos ficcionais parecem coesos quando são apresentados.

“Como construir um mundo ficcional” por Kate Messner

“Assim como vida real, mundos ficcionais operam de forma consistente dentro de um espectro de regras físicas e sociais. Isso é o que torna detalhados mundos coerentes, compreensíveis, e dignos de exploração.”

Worldbuilding em animes

Mundos fantasiosos não são encontrados somente em livros, séries ou filmes, mas também em animes. Obras focadas em fantasia tem a importante missão de ter essa construção de mundo muito bem desenvolvida, para que as relações deste universo ajudem a desenvolver a narrativa e seus personagens.

Temos animes que se passam em nosso mundo, onde o worldbuilding não acaba sendo aplicado tanto para a construção da história. Porém, falando de animes de fantasia, muitos animes que personagens são enviados para outro mundo foram lançados nos últimos anos, ou seja, os famosos isekais. Muitas obras da demografia shounen também podem ser analisadas como vários tipos de universo criados para a representação da história. Esses tipos de história precisam então ter um worldbuilding bem mais elaborado.  

Re:Zero é um anime isekai que tem um bom worldbuilding, mostrando um mundo, inspirado um pouco na nossa Idade Média, mas com a utilização de magia e fantasias para compor este mundo.

Portanto, a ideia é que, quanto menos semelhanças o cenário de um anime tenha com nosso mundo real, mais detalhes sobre esse mundo precisam ser mostrados e explicados para passar a sensação ao espectador que o mundo que estamos vendo é verdadeiro e coerente com a história.

Então, neste texto se analisa o worldbuilding de uma das obras mais famosas, One Piece. Eiichiro Oda, autor de One Piece, consegue nos apresentar um universo bastante interessante para ser acompanhado. Assim, vamos analisar alguns elementos importantes para a construção de mundo da história. 

Os elementos pensados para o worldbuilding de One Piece

One Piece é uma série de mangá escrita e ilustrada por Eiichiro Oda desde 1997 e a história hoje está em adaptação pelo estúdio Toei Animation. A trama acompanha as aventuras de Monkey D. Luffy, um garoto que explora a Grand Line junto de sua tripulação em busca do tesouro mais procurado do mundo, o “One Piece”, a fim de se tornar o próximo Rei dos Piratas. 

Em busca de mostrar e debater porque One Piece tem um dos universos mais bem construídos, vamos analisar de uma forma geral o seu worldbuilding. Assim, vou separar em alguns pontos para a análise deste universo criado pelo autor, comentando sobre a geografia do universo, as leis regidas pela física deste mundo, a política e cultura pensadas para a construção deste universo.

Com estes tópicos, vamos entender como a obra de One Piece consegue ser tão bem detalhada e pensada. São elementos como estes que compõem o universo da obra e acabam ajudando no desenvolvimento da narrativa e na construção dos personagens no anime. 

O universo de One Piece em um modo geral

Mapa que demonstra o planeta de One Piece.

Um dos elementos mais importante para o universo nas histórias é o cenário natural que serve para a narrativa. Temos até um termo para a criação de mapas fictícios, que é a a geoficção. O autor pode se inspirar em elementos no mundo real para criar esse universo para a sua história. É importante relembrar que, quanto menos semelhanças este mundo tem com nosso mundo real, mais detalhes sobre este mundo precisam ser informados ao leitor.

Assim, vou comentar sobre a construção geográfica, como o oceano e as ilhas que impactam nos elementos da narrativa de One Piece. Vale ressaltar que no anime, falamos de um planeta inteiro coberto por um oceano. O que faz sentido no universo de One Piece já que a história é sobre piratas.  Reforço que muitos piratas que aparecem em One Piece são inspirados em piratas em que, na vida real, já existiram na época das Grandes Navegações, onde já comentei em um texto meu aqui no site

Características geográficas e o oceano

A criação de mapas para desenvolver um mundo é muito usada em obras de fantasia e em One Piece não é diferente. Em exceção, temos um continente, o Red Line, que se estende ao redor do globo. A Grand Line ainda é cercada pelos Calms Belts, duas faixas de oceano, que possuem “águas calmas”. E assim, o mundo de One Piece é dividido em quatro partes: North Blue, East Blue, West Blue e South Blue. O planeta de One Piece é coberto por mais água do que terra, as ilhas acabam sendo pequenas partes de terra, onde normalmente, são pequenos reinos ou vilas menores em comparação aos continentes do nosso mundo.

O vasto oceano que compõem grande parte do planeta do universo de One Piece dá palco ao enredo do anime. O youtuber Ohara, que tem um vídeo sobre worldbuilding em One Piece, analisa a representação do oceano apresentado na obra. Ele divide o mar em duas zonas distintas, a superfície e as profundidades: 

A superfície é uma representação da liberdade que o herói anseia e seu horizonte infinito se abre para um número infinito de destinos possíveis. Por outro lado, as profundezas do oceano. Comparadas à liberdade da superfície, as águas escuras e intermináveis ​​abaixo dela estão associadas ao perigo e ao desconhecido.”

De uma forma geral, é interessante como a distribuição de rios e mares, o clima, vegetação, relevo e entre outros elementos que compõem a geografia do mundo de One Piece impacta de certa forma a narrativa central e os personagens que vivem nestas ilhas. Assim, o desenho de mapas e a localização do que acontece em cada lugar é um ponto muito importante para o conceito do worldbuilding.

As ilhas 

Falando em especial sobre as ilhas, onde também vou dar ênfase mais para frente, temos então ilhas espalhadas pelo mapa, onde nelas, acontecem grande parte do desenvolvimento da trama. Muitas ilhas podem ter diferentes características geográficas ou climáticas. Oda deixa claro que as ilhas na Grand Line tem sua estação própria. 

Desta forma, podemos até comparar como o clima influencia no humor da cena construída em One Piece. Dependendo do contexto, a maioria dos fenômenos climáticos pode ter conotações positivas ou negativas. Ohara dá alguns exemplos de como o clima influencia no humor da cena: 

“Raios e trovões podem representar paixão ou terror. A chuva pode ser um sinal de aconchego ou tristeza. O vento pode ser alívio ou tensão. O sol pode simbolizar a felicidade, mas também um exterior falso. E a neve pode fazer uma cena parecer muito pacífica, mas também, pode significar a morte.”

Dando exemplo sobre ilhas com características marcantes, podemos citar a ilha de Little Garden, que aparece na saga Alabasta. Ela é uma ilha selvagem pré-histórica, que tem um clima que permite o florescimento de uma floresta tropical. Ou até a ilha de Drum, que é coberta de neve que possui uma série de montanhas que compõem a ilha. 

Esta foi uma análise mais geográfica sobre superfície terrestre e seus aspectos físicos das ilhas. Mas não podemos deixar de comentar como a geografia, tanto como a história, são influenciados pela política interna, e também externa do mundo de One Piece, tanto também como as injustiças resultantes neste mundo. Assim, estas configurações geográficas que são apresentadas não é apenas uma simples geografia, e sim, elementos que vão ser importantes para conflitos da história. 

Física

Sobre a física, precisamos determinar as leis que regem este universo. O universo fantástico pode ter magia, poderes, tecnologia… O autor então precisa estabelecer limites e regras para estes elementos que possam ser envolvidos para a criação do mundo.

Em One Piece já sabemos que temos alguns elementos fantásticos. Falando então primeiramente sobre as Akumas no Mi, ou Frutas do Diabo, são frutas místicas encontradas em todo o mundo. Quando consumidas, elas fornecem a pessoa uma habilidade especial.  Imposto este elemento, temos também algumas regras regidas pelo autor sobre as Frutas do Diabo: uma pessoa só pode adquirir os poderes de uma única fruta. E o usuário fica impossibilitado de nadar, pois perde as forças na água. Temos também o Haki que aos poucos fomos apresentados sobre este elemento no anime. 

O importante sobre os personagens e seus poderes é sua evolução. Seja aqueles que têm a possibilidade de usar Haki, ou possui poderes da Akuma no Mi, ou que possuem uma técnica de luta. O desenvolvimento de poderes e técnicas tem que ser coerente para nós espectadores. Ou seja, é um tanto quanto exagerado que um personagem torne-se forte de uma hora para outra, é necessário que o desenvolvimento de conhecimento, técnica ou poder ocorra de forma gradativa. 

Assim seja, ao criar um mundo, regras precisam ser determinadas para a história ter coerência. É claro que, às vezes, algumas regras acabam sendo quebradas. Mas como reforça Ohara em seu vídeo sobre worldbuilding em One Piece, “qualquer que seja a variação que foge da coerência do universo, ela ainda deve fazer sentido no contexto da história que está sendo contada.” 

Personagem Enel, o vilão da saga de Skypeia

Podemos citar o exemplo no arco de Skypeia, onde Enel usa seu poder da Akuma no Mi para atacar as pessoas que estão na ilha. todos são eletrocutados mas depois percebemos que ninguém acabou morrendo. Quando isso ocorre, pode incomodar aqueles que buscam uma coerência à narrativa na questão dos poderes. Precisa-se fazer sentido aquela técnica que o personagem tem com base desenvolvimento dos poderes e das habilidades dos personagens.

Política e cultura

Arco Dressrosa

Relacionar a política dentro de animações japonesas é visto como uma grande polêmica entre o fandom otaku. Mas é impossível não discutir a política criada neste universo de One Piece. Onde, de certa forma, ela e a cultura acabam sendo moldadas pelo âmbito da geografia e da história. 

Voltando a falar do âmbito geográfico, dando ênfase as ilhas que o Bando do Chapéu de Palha visitam, podemos ver que cada uma possui um tipo de governo, onde a maioria é caracterizada por um rei no comando. Seja um governo totalitário ou democrático, vemos que muitas ilhas acabam sendo isoladas do mundo afora. 

Passado de Nami mostrado no arco Arlong Park

Como cada um vive em sua ilha, em “sua bolha”, faz sentido então encontrarmos contextos sociais e culturais diferentes. Assim, Oda consegue criar sua narrativa em base a diferentes problemas sociais, culturais e políticos que a população de diferentes ilhas vivem. Por isso encontramos um leque de opções de diferentes histórias quando o Bando do Chapéu de Palha visitam uma ilha. 

Podemos entender que toda ilha nos permite uma experiência muito complexa em detalhes, com um conteúdo muito interessante apresentado. Como por exemplo, antes mesmo do Bando do Chapéu de Palha chegarem a Grand Line, temos o arco Arlong Park, que é da saga East Blue. Neste arco, é debatido temas como exploração de terras e escravização que a vila Cocoyasi enfrenta com Arlong e seu bando. 

Marinha e Governo Mundial

Os três almirantes

E assim, além dos governos que são apresentados em cada ilha, temos o Governo Mundial em One Piece. Sendo a maior organização política do universo do anime, os marinheiros servem como sua principal organização militar. Ao acompanhar o anime, vemos que o Governo Mundial, tanto a Marinha, tendem a se comprometer com questões duvidosas, como corrupção. 

Podemos então descrever que o Governo Mundial é totalitário a uma extensão absoluta, onde muitas vezes, faz esforços maciços para garantir que eles permaneçam no poder. Para isso, eles podem fazer a apropriação ou eliminação de qualquer fonte de poder que poderia causar riscos à eles. Comentando mais a fundo, indico um reverie do One Piece Ex da Pah, onde ela analisa o poderio do Governo Mundial e seus objetivos.

Então vivemos em um universo com um governo totalitário. Tanto pelas ações do Governo Mundial, quanto da Marinha, ou possivelmente dos sistemas de governo que compõem as ilhas. Os que se opõem ao regime são os que se movimentam livremente pelo planeta, ou seja, os piratas. Mas também vale ressaltar que temos personagens que não possuem consciência de se opor ao sistema.

Governo Mundial

Luffy vive em uma jornada para ser o rei dos piratas, e mesmo parecendo de uma forma indireta, para realizar seu sonho, ele luta contra o sistema opressor em que vive. Cada ilha que o Bando do Chapéu de Palha visita, seus integrantes esbarram com regiões, culturas e diferente tipos de conflitos que são resolvidos a cada fim de arco. Entretanto, a ameaça do Governo Mundial imposta para aquele universo não muda. 

Volto a comentar do youtuber Ohara, onde ressalta que, quando Luffy se tornar livre, ou seja, realizar seu sonho, ele vai libertar o mundo. É desta forma que a história se parece tão coerente para os espectadores. Por mais que esta possa ser a mensagem, Luffy raramente teve essa consciência sobre a luta pela liberdade de todos, diferentes de outros grupos que são apresentados no anime como os revolucionários ou os antigos historiadores de Ohara.

Claro que também temos outros elementos políticos, como shichibukais, a CP9 ou os revolucionários que aparecem no anime. Outro ponto também são os elementos culturais que foram pensados para a criação de conflitos que são desenvolvidos durante o anime. Um assunto muito importante que One Piece discute são os preconceitos raciais, sociais, e de gênero que são demonstrados durante a trama. 

Arco Ilha dos Homens-Peixe, onde Jinbei doa seu sangue para salvar Luffy.

Um exemplo deste tema foi quando Luffy visitou a ilha dos homens peixes e nos é mostrado a questão do racismo. Antes mesmo em Sabaody, Robin, que é arqueóloga e protetora da história, explica melhor essa complicação histórica. Assim, uma das cenas mais emocionantes deste arco é quando Jinbei doa seu sangue para salvar a vida de Luffy, um ato que não era visto como boa intenção feita entre um homem peixe e um humano.

Conclusão: A importância do worldbuilding

Uma bom worldbuilding não é apenas criar vários elementos, não tendo nexo nenhum entre eles. Criando vários elementos onde o autor não consegue ter controle pode fazer a história ficar confusa e o público acabar desistindo de acompanhar a história. Portanto, a ideia do worldbuilding, a partir da criação destes elementos para a criação do universo, é que tudo precisa estar interligado para assim conduzir a história, os personagens e suas ações. 

Um universo enriquecido de elementos que fazem coerência com a história motiva o espectador a querer acompanhar aquele mundo, a história. O fã vai querer saber mais sobre este universo, como foi criado, suas regras, histórias, como foi moldado. Assim, o autor consegue assegurar que os personagens na trama conseguem conviver naquele mundo de uma forma coerente.

E mesmo que as conexões não fiquem tão claras ao acompanhar a narrativa principal de One Piece, podemos tirar algumas dúvidas em respostas no SBS respondidas pelo Oda, além dos databooks e as histórias das capas dos capítulos.

Vídeo sobre worldbuilding do youtuber Ohara, que citei algumas vezes neste texto

Por estes elementos bem construídos em One Piece é que conseguimos encontrar um universo tão criativo e vasto de elementos. Eiichiro Oda nos traz conflitos, em um âmbito geral, com personagens que possuem grandes sonhos para realizar em um universo em que temos um governo corrupto que acaba influenciando na jornada do Bando de Chapéu de Palha

Arco de Wano que trata questões políticas e sociais.

Além disso, temos os conflitos propostos para a narrativa de cada arco se passando em uma ilha diferente, em que, mesmo Luffy pense indiretamente sobre isso, é uma forma de libertar o povo daquele sistema, que tem problemas políticos, sociais ou culturais. 

Quando encontramos um universo grandioso, com incontáveis regiões e até idiomas únicos, tudo torna muito fascinante para quem acompanha. O espectador acompanha aquele universo, onde o mesmo procura explorar ainda mais as aventuras que a história vai propor. 

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