Falar sobre uma história de Naoki Urasawa é sempre complicado, pois de fato ele é um dos únicos mangakás que consegue criar narrativas diferentes, mas todas absolutamente instigantes. 20th Century Boys é talvez a melhor narrativa que Naoki construiu em sua carreira.

Sabemos o quão difícil é manter uma história serializada no Japão, e ter tanto sucesso em todas as suas empreitadas é um feito e tanto. Urasawa é um mangaká diferenciado, que inclui muitas referências e conhecimentos da cultura ocidental, mesclando com a japonesa, tornando suas histórias mais reais possíveis. 

Naoki Urasawa é um fenômeno à parte, e graças ao seu talento em se comunicar muito bem com todas as culturas e países, recebeu uma mostra de arte em diversas partes do mundo. Agora ela está no Brasil, e você pode vê-la na Japan House, em São Paulo. Isto é Mangá: A arte de Naoki Urasawa ficará disponível até 05 de janeiro de 2020. 

Além disso, no Brasil, obras do Naoki foram publicadas pela Panini, sendo elas: Monster, Pluto e 20th Century Boys

Mas a ideia do texto não é falar de tudo que o Urasawa publicou, e sim de uma de suas histórias mais desafiadoras: 20th Century Boys. A distopia é um gênero popular, mas iniciado com muito mais força após a 2º Guerra Mundial, em que livros eram queimados, povos e minorias torturados e que governos tentavam recriar as histórias de seus países. 

Kenji e seus amigos da infância, se juntando novamente

Os autores mais famosos da literatura certamente são George Orwell (1984) e Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo), com livros bem contundentes contra a opressão e censura. O gênero é definido basicamente quando o universo está deteriorado, seja de forma prática, com cidades e povos destruídos e passando fome, até com os pensamentos deteriorados, de tanto que os governos controlam a mente das pessoas. 

As histórias podem ser tanto em uma realidade pós apocalíptica, quanto estarem absolutamente próximas da nossa realidade. 1984, por exemplo, é uma alegoria que representa a antiga União Soviética, porém com duras críticas a qualquer regime repressor e violento (o próprio Orwell era um progressista). 

20th Century Boys, assim como 1984, representa um universo totalmente próximo ao nosso, porém, no Japão

A história

Como disse no início, explicar a história de Urasawa é sempre difícil, pois são tantos detalhes, tantas relações, e ligações com a história real e artifícios do próprio mangá, que chega a ser difícil saber por onde começar. 

Aos que já leram Monster – também de Naoki -, que possui relações claras da Alemanha pós 2º Guerra, 20th Century Boys é retratado em um passado mais próximo: próximo aos anos 2000. Porém, o mangá não se passa apenas em 2000. Um dos diferenciais da narrativa de 20th Century Boys é contar diferentes histórias de personagens, em diferentes gerações. 

Portanto, temos um grupo da década de 60/70 ainda crianças, o protagonista mais velho no início do mangá, já na década de 90, próximo da virada do século, e, mais para frente da história, somos surpreendidos com outra geração: a atual, após 2015. 

Assim, o mangá é recheado de idas e vindas do passado, presente e futuro. No início é comum que se confundam na leitura, pois é muita informação em poucos volumes, mas, aos poucos, tudo vai se interligando. E é surreal como tudo se interliga, sem deixar brechas e furos. 

Sinopse: A humanidade não teria superado o desastre do final do Século 20 se não fosse por ”eles”, que criaram um símbolo. Em 1997, quando a crise se aproximava lentamente, o símbolo ressurgiu. Esta é a história de como um grupo de garotos comuns salvou o mundo.

Ai, tem tanto personagem foda aqui que eu nem sei o que dizer.

O mangá possui 22 volumes, mais dois extras (que continuam a história, portanto são importantes). Em um mangá de mistério, distopia e ficção científica, possuir 22 volumes e ainda manter uma estabilidade tão grande, merece muito ser mais falado.

Referências históricas

Sem as referências históricas, 20th Century Boys seria apenas mais uma distopia de um universo muito distante e de difícil assimilação. Então elas fazem total diferença na história. No início há a ONU discursando sobre as décadas pós 2º Guerra Mundial, que os países conseguiram uma diplomacia não-violenta, e que o rumo era buscar a paz mundial, ainda mais com a chegada do século XXI. 

Os jovens que nasceram já na década de 60 e 70 no Japão tiveram outra realidade: muito acesso à cultura estadunidense, crescimento econômico e tecnológico e desenvolvimento estrutural, desde escolas até estações de trem/metrô. A história começa com Kenji, o protagonista, nessa realidade da década de 90. 

Já com 30 e poucos anos, ele é dono de uma loja de conveniência franquiada, e cuida de sua sobrinha ainda bebê, Kanna. Sua irmã mais velha a havia deixado com ele, declarando que tinha uma missão urgente para fazer e não podia cuidar da filha. 

Nesse ar misterioso, começamos a descobrir que uma espécie de “seita religiosa” parece estar crescendo muito rápido, utilizando um símbolo que Kenji, ao ver, reconheceu ser parte de uma brincadeira de infância com seu grupo de amigos. Desde o início, a história do símbolo não cheira bem, e vamos vendo que cada vez mais parece fazer parte de uma conspiração bem maior. 

Aos que seguem os cultos da seita, e utilizam objetos com o símbolo que Kenji reconhece, sabem apenas que quem comanda esse grupo é o tal do “Amigo”. Sem rosto, sem nome, apenas um símbolo que quer mobilizar uma ideia: de que todos são amigos, e juntos são felizes, juntos podem salvar o mundo. 

O mistério da história é descobrir quem é o amigo. E o Naoki é um gênio em segurar o mistério e ir dando pistas ao decorrer da história.

E aí que vem o mais genial da história: uma sociedade comum, da década de 90, aos poucos, em cerca de 10 e 15 anos, se tornou tão dependente e fanática pelo “Amigo”, que passou a acreditar em absolutamente tudo no que ele tramava. Por trás, o Amigo comandava não só sua seita, mas o Partido Democrático da Amizade, ainda antes da virada do século. 

Quando se une a religião, fanatismo e política, uma arma gigantesca pode ser criada. O controle social. E é exatamente isso que vemos no decorrer da história. E ficamos cada vez mais aturdidos no mistério, em como Kenji e seus amigos, e sua família, vão lidar com algo que tem clara referência à sua infância. 

Em tempos como os de hoje, ler 20th Century Boys é uma aula política e social. Naoki pegou uma referência social do Japão recente, em que a juventude não se sente capaz, e que a sociedade não valoriza o indivíduo, fazendo com que a autoestima, autoconfiança e individualidade sejam quase nulas. Para fazer com que essa sociedade encontre um “profeta” e passe a segui-lo, não é tão difícil, pois todos estão em busca de uma resposta simples para viver. 

Ainda é preciso muito para falar sobre 20th Century Boys. São mais de 20 volumes, com muita história, mistério, plot twist, personagens carismáticos (Kanna, eu te amo), enfim. É um mangá que nos deixa com raiva, que nos faz ter mais crítica, que nos faz ver que não podemos cair em ideias conspiratórias, não podemos cair fácil em mentiras. É realmente uma aula sobre ser cidadão. Se tu tem mais de 17 anos, 20th Century Boys vai ser um mangá maravilhoso para você ler. 

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