É natural que a comunidade não saiba como são os processos de compra de direitos das editoras de mangás. Por vezes rola a cobrança de adaptação de nomes ou a fonte usada na capa, entre outros. Mas, há ainda mais detalhes que simplesmente boa parte das pessoas não tem ideia de como funciona. 

Alguns podem imaginar que ao comprar a licença de um mangá, a editora já tem tudo decidido com a editora licenciante (que por vezes pode ser a japonesa ou não, mas chegaremos lá). Mas, não é assim. Detalhes de acabamento, tradução, colorização (se necessário) e brindes são todos conversados durante os processos de edição. 

Então muita coisa pode acontecer. Para que vocês possam visualizar isso melhor, recomendo verem o anime Shirobako, que a Helena já escreveu aqui no Chimichangas. O anime mostra como são os processos para fazer um episódio de anime, e durante a história vemos como a equipe resolve problemas e passam por complicações diárias. 

Nos mangás os processos são diferentes, mas a ansiedade, pressa e planejamentos são similares. Nenhum mangaká começa uma história sabendo exatamente como serão os volumes seguintes e como a história terminará. Muitas ideias e desenvolvimentos vão ocorrendo enquanto a história tá sendo desenhada, o que traz muitas surpresas. 

Tudo bem que para o mangaká essa rotina é muito mais insana do que para uma editora estrangeira, mas muitas decisões e detalhes das edições lançadas também passam por uma rotina bem intensa e nada fácil. É isso que vamos explorar neste texto! 

Os japoneses não são organizados como se imagina 

Isso já foi falado diversas vezes em palestras e entrevistas com as editoras de mangás brasileiras, mas isso foi ainda mais reforçado ontem, na palestra da Panini Comics sobre os mangás de Naoki Urawasa, que ocorreu na Japan House, em São Paulo

O mercado editorial japonês é gigantesco. E os mangakás entregam os arquivos em capítulos de acordo com a frequência da revista (semanal, quinzenal, mensal, trimestral). Assim, a editora guarda os capítulos para serem unidos posteriormente em um encadernado. Acontece que os encadernados japoneses não possuem uma única versão. Como assim?

Há vários casos em que o autor escreveu nomes de objetos errado, fez onomatopeia errada, ou desenhou uma paisagem, pegando referência de algo real do nosso mundo, mas cometeu alguns erros. Isso ocorreu em Monster, por exemplo, quando Urasawa tentou desenhar Munique e outras regiões da Alemanha com muita precisão. Para consertar esses erros, os japoneses atualizam edições futuras, pedindo para que o autor redesenhe e arrume esses pequenos erros. 

Este homem charmosão é o Naoki Urasawa, considerado o novo Deus do mangá.

Com isso, imaginem o quanto de arquivo que as editoras não têm? Chega a ser uma loucura quando essas obras vem pro Ocidente, porque os licenciantes precisam mandar os arquivos mais recentes e atualizados. Acontece bastante das editoras brasileiras receberem arquivos antigos, desatualizados, com escritas erradas, entre outras gafes. Não é tudo perfeito, viu?

A equipe brasileira precisa estar atenta a tudo isso para poder manter a comunicação e ter os melhores arquivos possíveis. Há casos em que a editora japonesa envia os mangás originais para nós scanearmos, pois não existem arquivos digitais! (é normal as editoras terem os originais de todo jeito, mas scanear não é o ideal). 

A comunicação entre Brasil-Japão é predominantemente por e-mail

É claro que é um pouco redundante limitar tudo a e-mail, mas ainda ele é bastante útil para que as editoras dos dois países entrem em acordo com mais formalidade e entendimento. Podemos adicionar alguns outros métodos de mensagens, mas esqueçam a ideia que há uma conversação ou proximidade entre os setores dos dois países. 

Há questões de horário que influenciam bastante e limitam a condição de falar sempre por voz, mas além disso, explicações extensas são melhores por texto, para deixar tudo formalizado e acertado. Por vezes não é um meio tão fácil e prático, mas ainda assim é o mais usado.

Então, justamente por esse método de comunicação, é difícil pensarmos se as editoras japonesas têm uma editora brasileira favorita ou alguma que recebe mais “regalias”. Como vemos das obras de mais sucesso, a Panini tem mais mangás da Jump do que outras editoras, mas essa condição vai muito além da comunicação entre a Panini e a Viz

No Brasil não se negocia diretamente com a Shueisha para trazer mangás da Shonen Jump

Pois é. A Shueisha é uma editora japonesa imensa, que possui centenas de revistas de mangás e de outras mídias literárias. Ela sozinha não daria conta de lidar com o setor de exportação de suas histórias. Por isso, no Ocidente, a Shueisha é representada pela Viz Media, que é dos EUA

Inclusive, os aplicativos de leitura online dos mangás da Jump foram feitos em parceria direta com a Viz, pois ela tem uma facilidade muito maior de conversar com os países ocidentais. Então, ao invés das editoras brasileiras baterem na porta da Shueisha no Japão, elas reportam primeiro para a Viz, que vai agenciar essa licença. 

As editoras brasileiras podem sugerir uma edição que ainda não existe no Japão

Pode parecer meio estranho dizer que outros países podem criar um formato único que nem no Japão existe, mas isso tem se tornado bastante comum recentemente. Na verdade, sempre foi comum, desde quando os primeiros mangás chegaram aqui em formato meio tanko (metade do tankohon, o encadernado comum do Japão). 

Porém, após 2006 mais ou menos, os mangás brasileiros começaram a seguir os tankos comuns, mesmo com miolo e acabamento inferiores. Foram muitos anos nesse formato, e apenas nos últimos 4 anos as editoras estão procurando outras formas de produto. A JBC veio com os Bigs, mas esses são comuns no Japão.

Essa aqui é a versão de países latinos que falam espanhol, como Chile, Argentina etc. A nossa é parecida com essa, mas apenas com orelha.

A Panini, por exemplo, trouxe edições que nenhum outro país tem. Os melhores exemplos são Slam Dunk e Vinland Saga, que virá ano que vem em um formato muito próximo a Jojo, somando 2 volumes em 1. A edição comum de Slam Dunk possui 31 volumes. Os da Panini terão 24, seguindo como é o kanzenban do Japão

O que é kanzenban? No Japão, eles consideram a edição kanzenban como uma edição mais luxuosa e com mais páginas. Há mais brindes, algumas adições de comentários do autor, páginas extras que não tinham na edição comum, entre outros detalhes. Porém, o Slam Dunk kanzenban no Japão é muito mais luxuoso do que o nosso do Brasil

Então, a Panini comprou a licença do kanzenban, mas mudou totalmente os acabamentos e os materiais usados na capa, para baratear um produto que era o olho da cara no Japão. Com isso, o Brasil tem uma edição de Slam Dunk em moldes de kanzenban, porém não tão luxuoso assim, sendo um formato específico e único.

Outros países além do Brasil também podem sugerir novos formatos que sejam mais aceitos em seus respectivos mercados. É uma forma de trazer os materiais japoneses, mas adaptados à realidade dos outros países. Todas essas informações da Panini foram declaradas na palestra da Japan House, ok?

A diferença entre uma edição kanzenban e tankobon, no geral, é o número de páginas

É isto. Não tem muito segredo. Apesar da edição kanzenban ser considerada de luxo, quando o Japão aceita uma negociação de uma obra em kanzenban, ela vai se preocupar majoritariamente com o número de páginas, que precisa ser igual à japonesa. 

Um kanzenban pode ter entre 300 a 400 páginas, podendo ser 2 em 1 ou 1,5 em 1 (2 volumes tankos ou 1,5 tanko). Fora isso, as editoras brasileiras podem escolher qualquer outro material para o miolo, ou seja, papel, colagem, capa mole ou capa dura, se haverá relevo ou não, entre outros detalhes. 

Para exemplificar melhor, a própria edição de luxo de Monster, lançado no mês de dezembro pela Panini, é muito superior à edição japonesa. A semelhança é o número de páginas e as imagens da capa, mas todos os acabamentos são diferentes, e melhores. 

Então, quando uma editora brasileira está dizendo que está trazendo a versão kanzenban, não quer dizer que ela será idêntica à japonesa, mas sim terá a versão com a mesma capa e número de páginas. O resto pode ser totalmente diferente, e tá tudo bem. 

O autor da história pode participar ativamente das decisões 

Apesar das editoras brasileiras não terem acesso direto aos mangakás, isto é, não há o mínimo contato mesmo, existe um representante do autor para estar a par das decisões editoriais. Assim, é através desse representante que as editoras brasileiras sabem as preferências do autor e o que deve ser mantido ou não. 

Como exemplo, o Naoki Urasawa vetou veementemente que a edição da Panini tivesse capa preta como a da Conrad. Imagina alguém com ódio de capa preta. Esse é o Naoki. A Panini teve que criar uma edição com capa branca para o mangá ser novamente anunciado aqui no Brasil, anos atrás. 

Essa não é a versão brasileira, mas a nossa também é branca assim.

Há autores que deixam observações pontuais, como a maneira de deixar as onomatopeias e nomes próprios. E outros que já são ainda mais rígidos e preferem aprovar o material todo com as próprias mãos. Esse é o caso da Naoko Takeuchi com Sailor Moon e o Katsuhiro Otomo com Akira. As duas obras demoraram eras para sempre aprovadas, para então a JBC mandá-los à gráfica. 

Varia de autor para autor, mas se eles quiserem, eles podem sim ter a palavra final em certas decisões editoriais. Mas é isso gente, viram que não é tão simples assim editar um mangá até chegar em nossas mãos? Por vezes somos bem críticos e ofensivos com as editoras de mangás, mas tem muita coisa por trás dos produtos que não sabemos.

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