A Internet já viveu várias discussões sobre o que é shonen, mas todas as forças se voltaram para explicar que o termo não significa uma classificação de gênero, e sim de demografia. Eu não vou me alongar nessa discussão, mas shonen não é gênero. Repita isso 10x até entender que shonen não é gênero

Por vezes as pessoas apenas se confundem com o termo, outras apenas querem arranjar treta desnecessária e criar um debate absolutamente infrutífero. Acontece que não há como defender de maneira alguma o termo “shonen” quando é usado para gênero. Há apenas uma demografia que se apropria também quando queremos falar sobre gênero de uma história, que é o tal do “yuri”, coisa que eu já expliquei aqui no Chimichangas

Porém, fora o yuri, que tem uma pegada histórica bem diferente das outras demografias, nenhuma outra sequer tem como ser entendida como gênero, simplesmente porque dificilmente o termo permite algum tipo de padronização de histórias. E é isso que eu quero explicar aqui: o shonen não possui uma padronização de histórias há muito tempo.

Quando, por exemplo, falamos que uma “história shonen” é diferente de uma “história shojo”, há dois caminhos que podemos levar essa conversa: o formato do traço do quadrinho, e o ponto de vista, ou seja, a visão do protagonista da história. E mesmo nesse último caso há exceções. 

O shojo, historicamente, tem uma pegada no traço mais delicado, com um tom mais “mágico” e sobrenatural, com olhos grandes, personagens com traços mais leves e normalmente tudo é muito detalhado. O motivo disso é porque mulheres costumam ter esse modelo de traço, impondo até uma certa estética que ficou marcada no contexto cultural de como fazer mangás shojo. Porém, isso não é um padrão obrigatório das histórias de revista shojo e nem de autoras mulheres. 

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Rosa de Versalhes foi lançado em 1973, reinventando os mangás e sendo o principal quadrinhos para mulheres na época. A partir daí também surgiram as revistas shojo.

Na questão da visão do protagonista, é porque normalmente os protagonistas de shonen são homens, enquanto que dos shojo são mulheres. Mas isso também nunca foi unânime, pois o mercado de mangás vemos cada vez mais histórias diversificadas e com ares diferentes na hora de desenvolver um bom quadrinho. Ou seja, conseguem perceber que o termo se tornou vago conforme o tempo? 

O que importa saber sobre demografias?

Imagine que você entra em uma livraria e quer comprar um livro com uma história distópica, porém para adolescentes. Você vai procurar esse livro na categoria juvenil e não de suspense adulto, por exemplo. Porém a categoria é apenas um pontapé inicial para você identificar o livro, e não exatamente que a história conta 100% com adolescentes da sua idade que pensam exatamente como você em um mundo pós-apocalíptico.  

Quando falamos “livro juvenil” quer apenas dizer que ele é indicado para pessoas mais jovens, que podem se identificar mais com a história e também entender mais o vocabulário do livro. Mas a categoria continua muito ampla, em que é possível ler um romance, suspense, investigação, distopia, fantasia e ação. 

O shonen é exatamente isso. Ele é um pontapé inicial para que fique mais fácil de categorizar a história para uma certa faixa etária. Quando traduzimos o termo, shonen significa menino, justamente porque as história são indicadas para jovens de entre 11 e 18 anos, e até mais velhos que isso. É importante lembrar que a maioridade no Japão é apenas com 21 anos. 

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Podem espernear o quanto quiserem, mas Attack on Titan é shonen. Pode ser sério, psicológico ou sangrento, mas ele entra na faixa etária do público.

Portanto, não, shonen não são histórias indicadas para crianças, mas também não são histórias para idosos ou velhos. Vejam, o termo “indicação” explica muito bem que ninguém está proibido de ler uma história shonen. Então se você possui 30 anos e está lendo shonen, tá tudo bem. Assim como um adulto que está lendo um livro juvenil está tudo bem.

O shonen se popularizou justamente por ser amplo demais a ponto de ser lido por qualquer pessoa, de qualquer idade. Isso é apenas o básico para que você entenda que o termo “shonen” hoje em dia nem é lá muito importante, porque uma história totalmente inesperada pode ter sido publicada em uma revista shonen

Por que ainda usamos shonen para falar de mangá de ação?

Lá nos primórdios dos mangás, após a II Guerra Mundial, o mangá acabou se popularizando como uma expressão cultural no Japão, tendo grande repercussão após a década de 1960, principalmente com o Deus do mangá, Osamu Tezuka. 

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Apesar de ser de 52, o mangá recebeu uma animação na década de 60, tendo grande repercussão mundial.

O que acabou explodindo do Osamu Tezuka, que possui inúmeros mangás e animações, foi Astro Boy. Calma, há sim outros sucessos do autor, o Brasil mesmo já publicou tanta coisa dele que é possivelmente o autor mais publicado no país. Mas internacionalmente Astro Boy teve um sucesso surreal. E Astro Boy foi definido, lá em 1952, como “shonen”.

E a partir daí o Japão foi se entendendo com os quadrinhos e criando um mercado promissor para o país, com grande potencial de industrialização e exportação. Após isso veio as décadas 1970 e 80, popularizando histórias como Hokuto no Ken, Ashita no Joe, Mazinger Z, Cyborg 009, Golgo 13 e enfim. 

Todas as histórias da década de 50 e 60, e ainda a da década de 70 eram majoritariamente para meninos. Todos com ação, com o sentimento de honra e justiça envolvidos, pois esse era o contexto histórico e cultural da época. 

Ashita no Joe é um marco dos quadrinhos no Japão e tem todo o sentimento da sociedade japonesa masculina da época. A ponto de uma multidão se reunir em volta de um funeral de um personagem que morreu na história.

Nessa mesma época que surgiu a Shonen Sunday, Shonen Magazine, Shonen Action, Shonen Jump e enfim, mais um monte de revista shonen. Porém, desde lá, a demografia shonen não se limitou a mangás de luta, de poderes e robôs. Em 1973, por exemplo, a Shonen Jump lançou Gen, Pés Descalços, uma história dramática sobre um garoto que sobreviveu à bomba atômica de Hiroshima

Inclusive, se a gente voltar e ler a biografia do Osamu Tezuka, veremos que o que se entedia de shonen nas décadas de 50 e 60 simplesmente foi pras cucuias. O cara criou história para tudo que você imaginar, e ainda tinha muito do entendimento racista com tribos africanas e indígenas, coisa que mudou drasticamente nos dias de hoje. 

Portanto, desde a década de 1970 o shonen passou a ser visto como uma demografia poderosa, que podia abarcar diferentes formatos de histórias, para públicos diferentes (mesmo que o foco fosse meninos jovens). Porém, as duas décadas seguintes, a revista que mais se popularizou foi a Shonen Jump.

A Jump acabou se tornando conhecida por Dragon Ball, Rurouni Kenshin, Yu Yu Hakusho e Slam Dunk, histórias que são muito conectadas pela ação, emoção e amizade. Essa fama acabou se fortalecendo na Jump, que procura até hoje seguir essa linha na hora de anunciar novas histórias. 

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Não é só a dublagem do anime de YYH que é famosa, o mangá foi um sucesso absurdo e até hoje é um dos mais vendidos do mundo.

Mas o mercado japonês cresceu absurdamente quando falamos de mangás e de longe o shonen é pautado pela Shonen Jump. Sabe todas as outras revistas que eu citei anteriormente? Elas ainda existem, e além delas, tem aí uma lista infindável de revistas shonen lançadas pelas editoras japonesas.

O poder do shonen de fato ampliou tudo, permitindo que autoras mulheres tivesse seu espaço desde a década de 1970 (Rumiko Takashi alô), assim como autores que quisessem contar outras histórias além da tradicional ação. Ou seja, aquela rudimentar linha de ação, honra e lutas já acabou desde a década de 70. 

Então, hoje, o que é um mangá shonen? Se ele está dentro dos parâmetros da idade do público, ele pode ser shonen. Se ele possui romance, ele pode ser shonen, se possui comédia, pode ser shonen, se ele é de investigação, ele pode ser shonen, assim como qualquer outro gênero que você imaginar. Basicamente: se um autor é aceito em uma revista shonen, a história dele é shonen, fim. 

Exemplos de histórias shonen que não são ação

Koe no Katachi, que teve animação recente, é shonen. E a história fala de inclusão de surdos, bullying, depressão e suicídio. O mangá foi lançado na Shuukan Shonen Magazine, a mesma de Fairy Tail

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E o mangá foi feito por uma mulher e ganhou prêmios pelo mundo. A autora é Yoshitoki Oima.

Sabe Orange? Primeiramente o mangá foi lançado em uma revista shojo. Por diversos problemas, a autora preferiu sair da revista e terminou a história em uma revista shonen, na Shonen Action. E a história é um romance escolar com pitadas de drama.

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Takagi Ichigo a autora dessa grande história. Outra mulher. Que ganhou prêmios.

Assim como conhecidas comédias românticas foram lançadas em revistas shonen: Love Hina, 100% Ichigo, Video Girl Ai, I’s, Nisekoi, enfim. Todas essas histórias tem 0 características de um mangá de luta, como Naruto, One Piece, Boku no Hero, Kimetsu no Yaiba etc (talvez no ecchi). Portanto, se você quer dizer que shonen é algo próximo desses mangás de luta você está extremamente equivocado. 

Por isso nas discussões utilizamos o termo “shonen battle” para facilitar o entendimento que estamos falando de mangás de ação na linha das revistas shonen. A demografia se tornou ampla demais para ser limitada a um único gênero, portanto não faz o mínimo sentido hoje relacionarmos shonen com gênero. É como se estivéssemos atrasados há uns 60 anos. 

Estamos entendidos? Então tá bem.

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