O yuri, assim como boys love, passou por grandes mudanças históricas no Japão, e por vezes não nos damos conta de como a evolução social e política ajudou nelas. Por isso, por nós brasileiros não estarmos tão conectados com todo o dia a dia e a história propriamente dita, ainda carregamos preconceitos e estigmatizamos todo um gênero e demografia. 

De forma simples e resumida, o yuri é um termo utilizado para os quadrinhos e animações com temas lésbicos. Isso mesmo, de forma direta e reta: mulheres lésbicas são protagonistas das histórias. Mas, essa é a interpretação moderna do tema, por muito tempo não foi assim. E daí que vem a necessidade da gente entender um pouco de história e sociedade japonesa. 

Bom, a história do yuri passou por grandes barreiras e preconceitos no Japão, e teve uma lenta evolução se compararmos com o yaoi, que já teve um público feminino bem mais atuante após a 2ª Guerra. O yaoi, que tempos depois se tornou BL, hoje tem inúmeras revistas dedicadas ao tema e é uma verdadeira demografia com uma série de gêneros.

E o yuri? O termo “yuri” já passou por algumas interpretações, e ainda nos idos de 1970, em que surgiram as primeiras histórias sobre relacionamento entre mulheres, a ideia era falar sim sobre liberdade da mulher e a comunidade lésbica, mas o tema era muito marginalizado, cheio de estereótipos para fantasias masculinas. 

Não só isso, com a real intenção de falar sobre romance entre mulheres sem admitir que as personagens eram bissexuais ou lésbicas, como se fosse uma fase, ou um momento na vida sexual de uma mulher. Essas barreiras acabaram atrasando um pouco certos assuntos e criando clichês que até perduram nos dias de hoje. 

O primeiro mangá a receber oficialmente o gênero yuri foi Shiroi Heya no Futari (1971), de Yamagishi Ryouko. Na mesma década, tivemos importantes obras que deram bons espaços para falar sobre liberdade sexual e temas LGBTs, como Rosa de Versalhes e Claudine, ambos da Ryoko Ikeda

Página do mangá Shiroi Heya no Futari, de 1971

Dificuldades do século passado

Digamos que o gênero ainda estava muito restrito à audiências heteronormativas, tanto femininas quanto masculinas. E essa fase foi bem longa, com a imposição de uma etiqueta chamada “Classe S” para identificar histórias que tratavam de romance entre mulheres. Portanto, o público leitor e até os criadores tinham certas imposições do que era bacana ou não fazer. 

Por isso que até os anos 1990 o termo yuri não era muito bem aceito por criadoras amadoras que faziam seus doujinshis (algo próximo do que entendemos por fanzines aqui no Ocidente). Na década de 90 inteira outros termos eram mais utilizados para tornar explícito que se tratavam de histórias com personagens lésbicas. Termos como “girl x girl” (女の子x 女の子) ou “woman x woman” (女x 女). Raramente era possível ver também “rezu” (レズ)“bian” (ビアン). Mas ainda assim, os fetiches e estereótipos masculinos também estavam bem presentes nessas criações.

Strawberry Panic foi uma novel lançada em 2003 e com anime produzido em 2006. Era comum ainda nessa época que animes e histórias yuri acontecessem em internatos femininos, para não ter trabalho de ter que explicar sobre orientação sexual, já que os relacionamentos eram todos entre mulheres mesmo.

Foi na entrada do século 21 que algumas coisas foram mudando. No entanto, diferente das 4 principais demografias no Japão – shonen, seinen, shojo e josei – o yuri sempre ficou nas beiradas, aparecendo ainda como um gênero da demografia shojo, e não tendo exatamente uma revista própria. 

A partir de 2003 que tivemos a Yuri Shimai Magazine (que não existe mais), e em 2005 a abertura da Yurihime, maior revista sobre yuri no Japão. Aí que as coisas começaram a mudar um pouco, mesmo com as histórias clichês de romances escolares de presença unicamente feminina e amor na adolescência – na linha de Strawberry Panic

Uma das edições da revista Yuri Shimai Magazine

Então, está claro que o yuri é um dos gêneros/demografias mais recentes até então e ainda há muito o que ser construído? As noções heteronormativas ainda se fazem presentes em certas obras, mas de modo geral, hoje, os direitos LGBTs e a liberdade sexual da mulher lésbica estão completamente inseridos em histórias yuri. 

O significado de “yuri”

Apesar do termo ser utilizado no século 20 para expor conteúdos não tão explícitos sobre a comunidade lésbica japonesa (ou de qualquer outra cultura), muitas das autoras e consumidores do gênero preferiram manter o termo, do que trocar para girls love, como teoricamente deveria ser para contrapor o boys love e ser mais “vendável”. 

Aí que vem a genialidade da semiótica. O que o yuri de fato despertava no coração do público e dos autores que criavam suas histórias? Que percepção do “yuri” eles tinham? Por mais que o termo fosse “mal visto” por parte da comunidade LGBT, ainda assim era um termo muito forte para se apropriar de pautas LGBTs e falar mais sobre a vida de uma mulher bissexual ou lésbica. E por quê?

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Girl Friends, mangá de 2007 da autora Morinaga Milk já passou a ter uma pegada diferente, falando mais abertamente sobre amor entre mulheres e com mais naturalidade

Mesmo que o senso comum construído pela comunidade otaku seja de que o Japão é um país conservador e restrito quando falamos de homossexualidade e direitos LGBTs, o país nunca teve as portas totalmente fechadas para o tema. As lésbicas e gays, principalmente, passaram e ter mais visibilidade na década de 1970. 

A primeira revista gay japonesa totalmente comercial foi criada em 1971, chamada Barazoku. O editor desta era Ito Bungaku, que também deu espaço para a cultura lésbica em algumas páginas. As editorias de cada tema foram divididos da seguinte forma: 

  • Barazoku se tratava dos temas para homens gays, que em tradução significa “Tribo da Rosa” 
  • Já as temáticas lésbicas eram chamadas de Yurizoku, ou “Tribo do Lírio”, que é uma flor que já simbolizava as lésbicas na mídia como um todo. 

Os conteúdos criados na Barazoku foi uma importante fonte para que as pessoas da comunidade conhecessem as organizações/associações lésbicas do país. Desde dessa época o termo “yuri” passou a ser muito significativo, mesmo que anos depois a etiqueta Classe S utilizasse o yuri como propagação de conteúdos não-lésbicos. 

As flores de lírio são bem abundantes na variedade, possuindo muitas cores, como branco, laranja, rosa, azul, salmão etc.

O histórico da flor de lírio

Acontece que a flor de lírio (ou lily no inglês) foi utilizada por décadas como um símbolo lésbico de desejo e paixão. Metaforicamente, a ideia era dizer que mulheres eram “bonitas, variadas e cheiravam bem”. Abarcava basicamente o que as lésbicas japonesas sentiam ao amar outras mulheres. (e veja bem, elas existiam e se uniam em pleno século XX). 

Assim, quando o século 21 chegou, as editoras, assim como a própria comunidade, achava justo que o nome oficial para a demografia e gênero continuasse sendo “yuri”. E assim foi: o nome oficial da revista voltada para o yuri se chamou Yuri Shimai Magazine

O lírio se tornou uma verdadeira referência às autoras. Não à toa, temos diversos títulos com o nome lily, como Lily Marble (mangá), Lily Love 1 e 2 (webtoons), Lily (webtoon), Kiss and White Lily for My Dearest Girl (mangá), Everyday Lily (webtoon) e mais uma lista enorme de títulos. 

As capas da Yurihime já são bem mais modernas e LINDAS DE MORRER

Por que yuri pode ser considerado gênero e demografia?

Justamente pelo yuri ter passado um bom tempo nas revistas shojo, onde nasceu, o yuri passou a ser utilizado como gênero, não se limitando ao shojo, apenas. Ainda hoje vemos várias histórias de mulheres lésbicas sendo retratadas em outras revistas, como shonen, josei, seinen etc. 

Mesmo com a existência da Yurihime pela editora Ichijinsha, casa das obras mais famosas no Japão e no mundo, outras editoras não criaram especificamente suas revistas yuri para fazer as histórias. É o caso da East Press, que publicou My Lesbian Experience with Loneliness. A editora não possui uma revista dedicada ao yuri, mas lança histórias com temáticas autobiográficas e políticas, abarcando eventualmente o yuri. 

Minha experiência lésbica com a solidão foi publicado pela editora NewPOP aqui no Brasil e você pode encontrá-lo aqui.

O mesmo ocorreu com Yagate Kimi ni Naru, uma obra que fez um grande sucesso no Japão por tratar do amor entre mulheres com muita maturidade e sensibilidade, mas que foi publicada numa revista shonen. A Comic Dengeki Daioh é famosa por dar também espaço para obras mais para o público LGBT, e além de Yagate Kimi ni Naru, tem ainda Ichido Dake Demo, Koukai Shitemasu (Even If It Was Just Once, I Regret It) e outras obras similares no catálogo.

Yagate Kimi ni Naru (Bloom Into You) é uma das obras mais lindas que existem.

Porém, nada de shoujo-ai!

Aqui entramos em um acordo: assim como shounen-ai deveria ser extinto do meio otaku, o shoujo-ai também deveria, já que ele não ajuda a categorizar nada e o termo yuri define muito bem do que a história tratará em algum nível. Se é sobre relacionamento entre mulheres, é yuri e cabou. No Japão, este é o único termo utilizado para referir as histórias com relacionamento entre mulheres.

Por vezes vocês verão pessoas chamando Yagate (ou Bloom into You, como preferirem) de shoujo-ai, mas não faz o mínimo sentido. A obra foi feita em uma revista shonen. Se a ideia é falar que a história não trata de muitos contatos físicos, ela falhou miseravelmente, pois Yagate tem muito contato físico, e até ações bem francas de carinhos e sexo. Muitas obras da própria Yurihime tem menos quadros explícitos que Yagate

E pra finalizar, Ichido Dake Demo, Koukai Shitemasu, obra da mesma revista, é etiquetado como yuri e tem a mesma exposição à contato físico até então. A diferença é que as personagens são adultas desde o início da história. 

Ichido Dake Demo, Koukai Shitemasu é a história de uma desempregada que está para ser expulsa por não pagar o aluguel e a proprietária (de cabelo longo) faz um acordo para viver com ela até ela achar um trabalho.

Quem consumiu e consome yuri?

O século XX foi um tanto complicado para definir quem consumia de fato o yuri, já que as histórias estavam muito propensas a se repetirem e mal terem relacionamentos afetivos saudáveis e bem construídos. Por virem do shojo, de primeira temos um público alvo consumidor feminino hétero, e não de homens héteros, como muitos devem pensar. 

Quer dizer que lésbicas ou bissexuais não liam? Não. Isso na verdade é bem obscuro, não dá para saber com muitas certezas. Mas dado ao mercado amador de criar histórias mais explícitas e fora dos olhos julgadores da sociedade da época, as mulheres da comunidade preferiam outros tipos de conteúdos, ainda que contribuíssem com o mercado. 

O que mudou?

No entanto, isso mudou bastante com o tempo. Se antes os estereótipos eram muito claros e a visão feminina heterossexual era muito presente, hoje a realidade é bem mais promissora. O espaço é bem aberto para qualquer um estar à vontade com a temática, conhecer mais sobre a comunidade lésbica e ao mesmo tempo se divertir, assim como qualquer outro gênero e demografia. 

A presença LGBT no meio otaku também é bem visível de forma mundial. Mesmo que estatisticamente não seja tão claro pontuar qual seja o público mais presente hoje, ainda assim as mulheres LGBTs estão bem mais inseridas nesse meio, de todas as formas. 

Em uma enquete em um dos maiores grupos do Amino Apps sobre yuri – Yuri Manga & Anime -, com mais de 400 votos dos usuários, 38% mulheres se declararam bissexuais que amam yuri, 34.6% lésbicas e o restante são dos mais variados tipos de pessoas. A enquete foi feita ainda em 2018 e, de lá pra cá, muitos mangás foram publicados no Japão e trazidos para o Ocidente, assim como animes foram anunciados e transmitidos por plataformas de streaming. 

Eu vou recomendar Asagao to Kase-san sempre que falar de yuri. O OVA é maravilhoso!!!!!!!!!

Os criadores

O Japão tem uma cultura do anonimato ou da criação de pseudônimos no meio artístico que dificulta termos dados tão sólidos, mas o senso comum é que o yuri é mais criado de mulheres para mulheres. Algumas autoras são conhecidas por serem criadoras específicas de yuri, como Amano Shuninta, Momono Moto, Mikanuji, Tamamusi, Ohsawa Yayoi, entre outras. 

Não apenas isso, a indústria como um todo possui áreas dedicadas ao yuri nas livrarias. É claro que o fandom ainda não é muito comparável aos boys love, mas ainda assim tem um espaço próprio. Há a Yuricon, comunidade lésbica bastante participativa dos quadrinhos japoneses, e a Yuriten, evento ambulante, que acontece em várias cidades durante o ano para promover obras e artistas do yuri no Japão. 

As Comikets também são espaços muito bons para criadoras amadoras crescerem mais no meio e serem notadas. Os direitos comerciais de mangás yuri estão sendo mais comercializados mundialmente, principalmente quando falamos de EUA, Coreia do Sul, Itália e França.

As histórias

Já as histórias têm a diversidade que qualquer outra demografia tem. A parte central é que em algum momento se fala de relacionamento entre duas mulheres.

Mas há histórias sobre mangakás (Still Sick, We Can’t Draw Love), de pegação em ambiente escolar (After School, Her Kiss – Infectious Lust), de colegas de trabalho (Crescent Moon and Doughnuts, Teiji ni Agaretara), de personagens fofas (Asagao to Kase-chan, Hanjuku Joshi e Girlfriends), dramas mais pesados (Unrequited Love, My Ignorance of a World Yet Unknown), comédias adultas (Bright and Cheerful Amnesia, 2DK, G-pen, Alarm clock) e até ficção (Beauty and the Beast Girl e Hero-san and Former General-san).

Eu aposto com você que você vai dar ao menos uma risada com os dentes amostra se ler Cheerful Amnesia. É GENIAL DEMAIS.

Há apelações? Coisas absurdas? Criação de homem para homem? Sim em todas as respostas. Da mesma forma que enfrentamos problemas com outras demografias, como o machismo, a misoginia, a homofobia e até criação de fetiches bem degradantes para o ser humano, não existe proteção ao yuri. 

StillSick, Original 100+ bookmarks / 【おしらせ】Still Sick連載します。 / April 2nd, 2018

E no Brasil?

Apesar do crescimento do gênero/demografia com o passar dos anos, o Brasil ainda está bastante aquém de dar a atenção que o yuri merece. Os sucessos recentes de Citrus, Kase-san e Yagate Kimi ni Naru deram um fôlego bem grande para o Japão criar mais histórias e tornar o mercado ainda mais acessível popularmente. 

O Brasil é uma referência cultural LGBT, com uma das maiores Paradas LGBTs do mundo, se não, a maior. Público cativo existe aos montes, em todas as regiões e de formas muito variadas. Filmes com temática LGBT tem ganhado nomeações e prêmios ocidentais nos últimos anos, trazendo discussões importantes e visibilidade massificada. 

No entanto, quando vemos em relação aos mangás, parece que a comunidade não existe, de tão escasso que é. Apenas a editora NewPOP traz títulos e obras com temáticas yuri e boys love. A JBC Editora chegou a lançar Utena ainda na época do meio tanko, mas até então não mostraram estar abertos a republicar um dos maiores ícones bissexuais do cenário. Sailor Moon e Rosa de Versalhes, apesar da grande contribuição para o mercado, não são obras modernas e com foco em yuri

Mesmo que Citrus ainda caia para alguns esteriótipos, é certamente o mangá mais conhecido do cenário e abriu portas para que outros autores e histórias fossem notados.

Conclusão

O senso comum atrasado e datado já acabou há pelo menos 10 anos. Os conteúdos LGBTs em mangá não são “subversivos” ou “indecentes”. A quem quiser uma história mais literal do sexo, vai achar conteúdos, mas isso é algo generalizado da cultura dos mangás. O erotismo é um gênero extremamente presente na história do país e não tem divisas de gênero ou orientação sexual. 

As editoras podiam aproveitar o boom cultural dos direitos e visibilidade LGBT e criar uma campanha de marketing forte e bem focada no principal público consumidor. E, voltando ao que já foi falado, o yuri é um gênero/demografia em que qualquer pessoa pode gostar, se divertir e ler. Não existe barreiras, a não ser o próprio preconceito. 

Referências bibliográficas

Baka-udpates para utilizar datas e nome das revistas de forma correta. (https://www.mangaupdates.com/index.html)

Dynasty scans (desculpa, mundo, mas nesse caso a pirataria ajuda a gente conhecer obras muito nichadas e lembrar dos nomes para, eventualmente, ver se editoras norte-americanas compraram os direitos. Por respeito à autores e editoras, não linkarei) 

Friedman, Erica. Why We Call it “Yuri”. EUA, 2017. (artigo pode ser encontrado no link: https://www.animefeminist.com/history-why-call-yuri/)

On Defining Yuri. Symposium. Definição e histórico do termo yuri. Link das informações: https://journal.transformativeworks.org/index.php/twc/article/view/831/835 

Yuri isn’t Made for Men: An Analysis of the Demographics of Yuri Mangaka and Fans. Zeria, 2017. (Link do artigo pode ser encontrado em: https://floatingintobliss.wordpress.com/2017/11/27/yuri-isnt-made-for-men-an-analysis-of-the-demographics-of-yuri-mangaka-and-fans/)

Yuri vs Shoujo-ai: Why Terminology Matters. YuriMother, 201? (link do artigo disponível em: https://yurimother.com/post/185438570644/yurivsshoujoai

Yuri is for Everyone: An analysis of yuri demographics and readership. Nicki Bauman, 2020. (link do artigo disponível em: https://www.animefeminist.com/yuri-is-for-everyone-an-analysis-of-yuri-demographics-and-readership/)

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