O debate sobre representatividade LGBT é sempre recorrente na comunidade otaku, mas a discussão também vai além e não parte apenas de minorias, e sim representatividade de várias maneiras. E aqui vale pontuar que os mangás possuem grande papel em apresentar personagens de várias formas. O personagem com deficiência física, o plus size, o homem sensível, entre outros. 

O Japão é conhecido por ser um país conservador nos hábitos e costumes, porém o debate sobre gênero e orientação sexual existe há muito mais tempo do que se imagina. O mercado audiovisual e literário foi uma porta para que criadores, produtores e diretores pudessem expor suas ideias, o que tornou o ambiente bem mais liberal no país. 

Desde as produções de filmes do Studio Ghibli, até os animes mais recentes, assuntos mais “cabeludos” fizeram parte do mercado japonês. Inclusive, mesmo o Japão sendo um país de natalidade baixíssima, as histórias eróticas sempre existiram, que passaram das palavras para as imagens em quadrinhos no decorrer do tempo – Paul Gravett fala mais sobre esse assunto em seu livro “Como o Japão Reinventou os Quadrinhos”

Portanto, o mercado de animação e criação de mangá sempre foi um local de liberdade de expressão. Apesar da baixa aceitação à população LGBT no século 20, e da diferença entre o Japão e o ocidente quando o assunto é direitos LGBTs, o país tem dado passos importantes nos últimos anos

O cenário é tão liberal que assuntos polêmicos e complexos são constantemente debatidos no Japão e no mundo. Entre eles estão a pedofilia (lolicon), xenofobia, violência contra mulher etc. Porém, se o mercado abriu portas para que criadores fizessem coisas absurdas e chocantes, também abriu portas para que as produtoras e mangakás pudessem explicar mais sobre identidade de gênero e orientação sexual. 

Se engana aos que acham que os japoneses não falam sobre isso, não apresentam nada disso em suas histórias e que, tradicionalmente, o Japão vai continuar apagando a visibilidade LGBT. Como já pontuado no texto, passos importantes foram dados nos últimos anos e o assunto sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo já é amplamente discutido, tanto em órgãos públicos e privados. 

Mesmo que ainda tenha muita coisa a ser mudada, culturalmente e socialmente o Japão já não é mais tão conservador como dizem. Por isso, esta primeira parte do assunto tem o objetivo de mostrar os personagens LGBTs mais clássicos e antigos dos animes e mangás. 

Os personagens LGBTs no século XX

Para fazermos um paralelo temporal, é fundamental voltarmos ao início dos mangás no Japão. Os mangás tiveram um boom de popularidade na década de 1960, mas se consagrou definitivamente como um mercado cultural forte na década seguinte. E desde a década de 70 temos exemplos de histórias com personagens LGBTs

Oscar, de Rosa de Versalhes

No ano de 1972 foi lançado um dos mangás mais importantes historicamente para as mulheres da época: Rosa de Versalhes, lançado em 2019 pela editora JBC no Brasil.

Riyoko Ikeda, a autora, abre uma discussão que ainda perdura nos dias de hoje, mas que foi fundamental para que as mulheres japonesas pós-guerra tivessem noção de suas identidades e papéis de gênero. Podemos considerar Rosa de Versalhes um dos marcos históricos para discutir identidade feminina. 

E, para fazer essa discussão, a autora quebra totalmente os papéis de gênero da época, já que o Japão até antes da Segunda Guerra Mundial vivia em um sistema patriarcal, em que o país era comandado por um Imperador (não que hoje os homens não sejam maioria no parlamento). Com isso, era natural que a mulher fosse colocada em degraus abaixo ao homem, sendo amplamente inferiorizada e submissa.

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De acordo com o próprio livro de Gravett, Rosa de Versalhes foi o pontapé inicial para que as garotas passassem a ter mais coragem nas imposições e exigências de feminilidade, para que pudessem entender seus próprios termos do que se entende por mulher, e também a se relacionar com homens em pé de igualdade. 

Ikeda contrastou a vida e amores de duas mulheres durante a Revolução Francesa, ambas sacrificando seus verdadeiros sentimentos em nome do dever. Uma delas é a rainha Maria Antonieta, casada ainda criança com o príncipe herdeiro, mas que suspira por um belo conde sueco. A outra é uma criação de Ikeda, uma garota criada como um rapaz para satisfazer o desejo de seu pai de ter um filho. A garota travestida de homem Oscar ascende socialmente até se tornar capitã da Guarda Real, desejada por mulheres, mas secretamente apaixonada por seu admirador secreto, André, um servo da família que está abaixo da escala social.” (Gravett, p. 83, 2004)

Ash e Eiji, de Banana Fish

Ao contrário do que muitos pensam, Banana Fish não é yaoi/BL. O mangá foi publicado em uma revista shojo (Betsucomi), em 1985, e apresenta Ash e Eiji, que claramente possuem um relacionamento amoroso. O mangá clássico recebeu anime recentemente, e a história é bem pesada, pois envolve drogas, violência e estupro. A autora é Akimi Yoshida

Porém, mesmo que Banana Fish não seja BoysLove, o mangá teve um grande impacto no mercado japonês e ajudou para que histórias com personagens gays fossem mais comuns nos anos seguintes. 

O personagem de cabelo escuro é o Eiji e o Ash é o de cabelo loiro

Ainda na década de 1970, mulheres mangakás exploravam esse lado da homossexualidade, apresentando muitos mangás dramáticos de romance homossexual. Além de Banana Fish, podemos citar as histórias de Moto Hagio, mangaká de sucesso da década de 1970, que publicou diversos contos e histórias com personagens homossexuais na revista Bessatsu Shojo Komikku

Personagens de Sailor Moon

O clássico mahou shoujo não pode passar batido, não é mesmo? Sailor Moon é um mangá/anime muito importante historicamente pois apresentou mais de um personagem LGBT, e teve um sucesso mundial, coisa que era muito difícil acontecer. Rosa de Versalhes chegou a vender 12 milhões de cópias apenas no Japão, e depois dele nada chegou a fazer tanto sucesso de tal forma. 

Foi em 1992 que as coisas mudaram mesmo. O yaoi já existia, assim como outros mangás com personagens LGBTs, mas nenhuma das histórias conseguiu a repercussão que Sailor Moon conseguiu. Naoko Takeuchi criou um casal lésbico e as Sailors Starlights, que são três rapazes que se transformam em garotas mágicas para proteger a Galáxia. 

Sem contar que a própria Usagi tem muitaaaaa pinta que é bi.

Haruka e Michiru, as respectivas Sailor Urano e Sailor Netuno, formam um casal de mulheres. Haruka, sendo uma garota tomboy  – que gosta de vestir roupas largas e tem esse ar mais “masculino”-, e Michiru uma mulherona que deixa todo mundo babando por onde passa. 

O mangá ainda apresenta os personagens de formas mais sutis, mas fica bem claro no decorrer da história que há ali um subtexto de personagens lésbicas e transgêneros. Nas animações, essas representatividades são apresentadas com mais abertura do que no mangá, mas ainda assim ambas as mídias foram muito importantes para termos mais representatividade nos dias de hoje. 

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As Sailors Starlights! Quando as três saem da forma mágica, viram três rapazes.

Utena, de Shoujo Kakumei Utena

Aos que acham que no Japão as representatividades vieram apenas dos mangás e aí as produtoras adaptaram as histórias para animação, estão enganados. Utena é uma história original feita em anime, em 1997, e teve a adaptação em mangá tempos depois. Além de clássico, é um marco para a representatividade LGBT, não apenas por quebrar paradigmas, mas também apresentar uma bela personagem bissexual. 

O mangá foi publicado pela JBC no ano de 2008, mas em meio tanko (metade do original). Utena, a protagonista, é uma garota que sonha em ser uma espécie de príncipe encantado e por isso prefere se vestir com uniforme masculino na escola. Com isso, ela é admirada por mulheres e é uma dor de cabeça para a escola, que não gosta do jeito de Utena de quebrar os papéis de gênero no colégio.

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Utena e Anthy

Acontece que ela acaba entrando em uma bela encrenca e chega a duelar com um dos garotos da escola para proteger sua melhor amiga, Anthy. A partir daí ela passa a descobrir segredos do colégio e ter que lutar para proteger sua própria amiga, que acaba sendo seu grande amor. 

Hatsuharu e Ayame, de Fruits Basket

Mangá de 1998, criado pela mangaká Natsuki Takaya, é um dos mangás shojos mais importantes da década de 1990 e início dos anos 2000. Ambos os personagens são declaradamente bissexuais. Surgiram na história após o século XX, porém o mangá é recheado de boas intenções e quebras de papéis de gênero desde o início.

Ayame, irmão do Yuki

Já nas primeiras edições temos Yuki, um garoto que é tão bonito que chega a ser confundido como garota, e até se veste com vestido em um dos festivais escolares. No entanto, é preciso deixar claro que Yuki, apesar da aura “feminina”, sempre se viu como garoto, e se sente desconfortável com roupas femininas. 

É o oposto de Momiji, que no ginasial inteiro se sentia à vontade utilizando roupas femininas, mas ao crescer, se entendeu como heterossexual cisgênero (que se identifica com o gênero que nasceu). Ainda temos Ritsu, um homem tímido e com tendência agorafóbica, que para aguentar suas crises, se sente melhor vestido em yukata, sendo confundido com mulher. 

Infelizmente, mesmo com tantas representatividades ao longo da história, Natsuki-sensei não vingou nenhum personagem como transgênero ou mesmo drag queen, apesar de quebrar papéis de gênero. Ayame, por exemplo, é um estilista, apaixonado por moda, bissexual, se casou com sua costureira e teve filhos. Digamos que Ayame é o grande exemplo de homem não-tóxico e sem masculinidade frágil. 

Hatsuharu, o diferentão

Haru, outro personagem bissexual, também não aparece em uma relação aberta com homem, mas toda sua personalidade é construída em cima de uma pessoa que não liga para gênero, podendo até mesmo ser enquadrado como pansexual. O mangá de Fruits Basket já foi lançado no Brasil e recebeu agora em 2019 uma versão de luxo pela editora JBC

Isabella de Paradise Kiss

História de Ai Yazawa, Paradise Kiss é um mangá josei, lançado na revista Zipper, em 1999. Possuindo apenas 5 volumes e já lançado no Brasil pela Conrad, a história é totalmente ambientada no mundo da moda no Japão e fez tanto sucesso que teve uma adaptação em anime.

A história foi criada por Yazawa antes de Nana, o grande sucesso da sua carreira como mangaká. Isabella é uma mulher transgênera, e talvez a grande representatividade LGBT do século passado. Isabella explica sua história para a protagonista Yukari, mostrando que desde pequena se sentia como mulher e não conseguia se entender como homem. 

Isabella

George, o estilista talentoso do colegial, foi grande amigo de Isabella, e a apoiou nos momentos difíceis durante toda a infância e adolescência. Meu coração se encheu de empatia e compreensão quando li Paradise Kiss ainda na adolescência, e é fácil uma das melhores representatividades em mangá. 

O que esperar da Parte II 

A representatividade LGBT caminha junto da história da nossa sociedade, e nos mangás isso também é perceptível. Isso quer dizer que desde a primeira representatividade até hoje, tivemos inúmeras histórias – que saem dos gêneros/demografias yaoi e yuri – que possuem personagens LGBTs

A lista é grande, e vocês devem ter percebido que todas as representações vieram de autoras mulheres. Pois bem, ainda temos alguns mangakás homens que tentaram trazer uma representação LGBT, ainda com certos preconceitos e deslizes, mas que merece a citação em uma parte II. E claro, a Clamp precisa de um espaço próprio. 

E provavelmente teremos uma parte III, sobre o crescimento dessas representações em anime de 2010 para cá. Fiquem de olho!

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