Um conteúdo desse tipo nunca foi tão necessário como agora, em que o Brasil viveu a tentativa de censura mais descarada dos últimos tempos: o recolhimento de um quadrinho dos Vingadores da Bienal do Rio de Janeiro, por conta de um beijo entre dois homens, que são namorados. 

A população LGBT está cada vez mais saindo do armário e se assumindo no Brasil. De acordo com associações e consultorias do mercado LGBT, o Brasil possui cerca de 20 milhões de LGBTs. O número ainda não é exato, pois há muitos que não se assumiram ainda. 

Por isso, um texto sobre quadrinhos com personagens LGBTs é importante, além de discutir sobre esse público, que é grande e procura por representação em todos os cantos: cinema, literatura, música e TV. De forma mais específica, tratarei de quadrinhos mesmo, e aqui vai entrar desde HQs, mangás e quadrinhos nacionais.

A revolta contra a censura na Bienal foi grande e uma ação coletiva impediu que qualquer conteúdo LGBT fosse censurado em dos maiores eventos de literatura do Brasil. Além de jornalistas culturais constantemente noticiando as ações dos servidores da prefeitura do Rio de Janeiro e do prefeito Marcelo Crivella, editoras e pessoas comuns mostravam o repúdio nas redes sociais.

Para impedir de vez qualquer ação autoritária, o youtuber Felipe Neto comprou 14 mil livros temáticos LGBTs e distribuiu gratuitamente nos últimos dias de evento, todos plastificados com os dizeres: “este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas”. 

A HQ em questão era a Cruzada das Crianças, e o tema nem de fato é LGBT, apenas há dois homossexuais que estão em um relacionamento sólido: Hulkling e Wicanno. A HQ gira em torno dos Jovens Vingadores e da cruzada para descobrir onde está a Feiticeira Escarlate. Enfim, a polêmica toda também teve um ponto positivo: as HQs da Salvat esgotaram na Bienal antes mesmo dos agentes da prefeitura pudessem recolher qualquer coisa. 

Como o quadrinho já não era mais o foco da prefeitura, eles conseguiram passar mais vergonha ao tentar censurar qualquer outra obra com algum resquício LGBT, e por isso, a ação de Felipe Neto foi importante, distribuindo todos os 14 mil livros para os consumidores. 

A polêmica chegou até a voz do desenhista do quadrinho, Jim Cheung, que fez uma publicação no Instagram sobre o ocorrido. Não apenas isso, mas o que aconteceu na Bienal chegou até a New York Times, The Guardian e outras mídias estrangeiras. É, uma verdadeira vergonha internacional.  

Mas, esse acontecimento também nos traz algumas respostas interessantes: sim, as pessoas se interessam por conteúdos em que personagens são LGBTs e as histórias são majoritariamente sobre personagens LGBTs. Em apenas dois dias 14 mil livros foram distribuídos, em um país que possui o governo mais conservador desde a redemocratização, em 1988. 

Como é o cenário de quadrinhos LGBTs no Brasil?

Infelizmente nosso mercado focado em diversidade é muito limitado e pequeno, em um cenário que já é nichado como é com os quadrinhos. O que é um contrasenso, o Brasil tem uma das maiores Paradas LGBTs do mundo, e na última edição reuniu mais de 3 milhões de pessoas na Avenida Paulista, em São Paulo

Além disso, o país já permite a união homoafetiva em cartórios do Brasil todo, e há uma certa organização para quem é transexual e passa por todas as etapas de mudança de registro e hormonais. Em comparação com o Japão, por exemplo, estamos muito à frente na legislação e nos direitos LGBTs.

Porém, o Japão, mesmo sendo um país conservador, possui um mercado de criação de mangás com temática LGBT imensamente maior do que o nosso. O mesmo quando falamos de Estados Unidos e países europeus. Os quadrinhos com protagonistas gays e lésbicas, por exemplo, já lançados no Brasil, vieram justamente desses países. 

O cenário nacional tem mudado aos poucos, mas ainda falta investimento, atenção e visibilidade das editoras como um todo com a população LGBT. Mesmo com alguns quadrinhos na temática LGBT que sejam estrangeiros, chega a ser triste comparar com a quantidade de quadrinhos heteronormativas. 

Entre os mais conhecidos há Paper Girls, lançado pela Devir, Scott Pilgrim da Cia das Letras, Fun Home, lançado pela Todavia, Batwoman lançado pela Panini Comics, e Azul é a cor Mais Quente, da Martins Fontes

Trecho da HQ Paper Girls

Quando falamos de mangás, a NewPop é a editora detentora da maioria dos títulos, entre eles Joy, Nº6, Loveless e Citrus. A Panini recentemente lançou O Marido do meu Irmão, que também é uma linda história sobre aceitação e preconceito. Saindo da temática principal LGBT, há quadrinhos em que há personagens secundários e romances entre pessoas do mesmo sexo, assim como pessoas transgêneras. 

Aí podemos citar Paradise Kiss, lançado pela Conrad, Sailor Moon e Sakura Card Captors lançados pela JBC, assim como Psycho Pass e The Gentlemen’s Alliance Cross da Panini. Nesses histórias há a Isabella Yamamoto, Haruka e Michiru sendo um casal, Tomoyo que chega a se declarar para a Sakura, assim como Yayoi Kunizuka, que está em um relacionamento com a Shion Karanomori, e Ushio Amamiya que é bisexual em The Gentlemen’s Alliance Cross, que ainda ainda tem um casal gay: Yoshitaka “Maora” e Maguri Tsujimiya. 

Marido do meu Irmão já foi finalizado pela Panini aqui no Brasil

A Poc Con 2019 pode mudar o cenário de quadrinhos LGBTs?

Maior evento de quadrinhos com temática LGBT do Brasil já chegou em 2019 arrebentando e lotando o Centro de Convenções Osaka Naniwa-Kai, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo. A Poc Con aconteceu no dia 22 de junho, pré-parada LGBT em São Paulo, e reuniu milhares de pessoas.

O evento teve o objetivo de dar visibilidade para artistas LGBTs e simpatizantes que criam conteúdos sobre diversidade, dando espaço para todos que querem mostrar que é possível atender a um público alternativo, e que esse público está pedindo e muito por mais quadrinhos desse tipo. 

Foto do evento Poc Con 2019, em São Paulo.

A maioria dos quadrinhos expostos na feira são independentes e os autores vivem de financiamento coletivo, o mesmo com as editoras menores.  A primeira edição serviu para ver a aceitação do público, e já houve a confirmação de que haverá Poc Con em 2020, em um lugar maior e com mais atrações. É mais uma oportunidade para as editoras lançarem quadrinhos na mesma época e também apresentarem seus materiais para a população LGBT

Entre os diversos artistas, foi possível ver muitos prints de personagens assumidamente LGBTs, assim como fanarts de personagens da cultura pop que os LGBTs entendem como gays, bis ou lésbicas, etc. Por isso, muita coisa de She-ra, Boku no Hero Academia, Avatar e quadrinhos Marvel e DC Comics. Além de eco bags, canecas, tirinhas, adesivos e marca-páginas.

Dos quadrinhos independentes eu cito com felicidade Mayara & Anabelle, que é um quadrinho divertidíssimo e com protagonista lésbica, totalmente fora do estereótipo, e com muita ação, coisas nonsenses e engraçadas demais! A HQ é de Pablo Casado (roteiro) e Talles Rodrigues (arte).  

Conclusão

Alô, editoras, acho que está na hora de trabalhar melhor nos meios de divulgação e produtos mais alternativos, que atendem outros públicos e tragam uma nova demanda no mercado. Ninguém aqui está dizendo que vocês só podem lançar coisa LGBT daqui em diante, mas que a falta desses materiais no Brasil é notável e merece atenção. 

Quadrinho dos Vingadores com dois personagens gays esgotou na Bienal, 14 mil livros com temática LGBT esgotados em 2 dias na Bienal, muitos quadrinhos com temática LGBT sendo divulgados, evento de quadrinhos para LGBTs sendo um sucesso, maior parada LGBT no país no último ano. A população LGBT está presente, e são milhões de pessoas esperando por representatividade. Tudo isso são números e notícias que as editoras podem se basear.

Aproveitem e deem uma olhada nos mangás yuri que já foram lançados no Brasil, que são histórias voltadas para o relacionamento entre mulheres. No texto vocês também podem ver o crescimento da demografia/gênero no Japão, que tem muito mais quadrinho para lésbicas e bisexuais que o Brasil. 

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