A série Locke & Key é uma adaptação da homônima história em quadrinhos escrita e desenvolvida por Joe Hill e ilustrada por Gabriel Rodriguez, publicada originalmente nos Estados Unidos (EUA), desde 2008, enquanto no Brasil, a partir da editora Geektopia, teve seu lançamento apenas em 2017 como HQ, com o título Locke e Key: Bem-vindo a Lovecraft.

Atualmente, após inúmeras tentativas, a presente obra finalmente conquistou sua produção televisiva, tendo passado pelas mais diferentes produtoras: FOX, Hulu e Netflix, sendo que a IDW Publishing, editora que publica os volumes de Locke & Key nos EUA, foi a responsável por iniciar o projeto de adaptação, com uma trajetória de aproximadamente doze anos para obter êxito.

Durante esse percurso, ficaram para trás um piloto produzido pela FOX, com elenco totalmente diferente, bem como a ideia de produzir uma trilogia cinematográfica do seriado em questão. Afinal, em 2018, a Netflix, pelas mãos do roteirista Carlton Cuse e demais desenvolvedores (destacando-se Meredith Averill e Aron Eli Coleite), decidiu abraçar o desenvolvimento do projeto junto com a IDW Publishing, resultando na recente série de, até então, uma temporada com dez episódios. 

A título de curiosidade, eis o mencionado piloto, que aposta numa história mais voltada para um formato macabro, porém com uma produção visual menos caprichada, ao contrário do que acontece na série produzida pela Netflix, como será apresentado adiante.

DESTRANCANDO O UNIVERSO DE LOCKE & KEY

A história gira em torno da família Locke, composta pelo casal Rendell (Bill Heck) e Nina (Darby Stanchfield) e os respectivos filhos, Tyler (Connor Jessup), Kinsey (Emilia Jones) e Bode (Jackson Robert Scott). 

Eles moravam em Seattle, porém após sofrerem um episódio traumático, que culminou no falecimento de Rendell, figura paterna da família Locke, Nina se viu obrigada a realizar uma mudança, passando a residir na mansão Keyhouse, situada em Matheson, Massachusetts, tida como uma casa ancestral dos Locke. 

Rendell foi assassinado dentro da própria casa, com todos presentes no momento da ação criminosa. Foi uma atitude bruta e inesperada, cometida por alguém inimaginável, deixando todos da família extremamente perturbados, cheios de questionamentos sobre o motivo do crime e se poderiam ter evitado tal atrocidade, bem como com um pesar e tristeza profundos.

Considerando toda a situação, e sabendo da mansão em Matheson, Nina opta por morar em um local completamente novo, com o intuito de respirar novos ares e conhecer novas pessoas, mas também de saber mais a respeito do marido e do passado do mesmo. 

Nem tudo sai como planejado e ela se vê rodeada de novidades e mistérios em relação ao homem com quem se casou, principalmente sobre alguns dos acontecimentos passados envolvendo a juventude de Rendell e o novo lar.

GUARDADO A SETE CHAVES (OU NEM TANTO)

Em relação à Bode, Kinsey e Tyler, tem-se que eles também são afetados de maneira drástica com o falecimento do pai e com a nova residência, tanto por questões pessoais quanto por questões sobrenaturais e surreais. 

O primeiro por frequentarem uma nova escola, precisando lidar com a busca de amizades e relacionamentos amorosos. Ademais, na cidade sabiam da tragédia, deixando-os desconfiados sobre as boas intenções… fora o sentimento de saudades e vazio deixado pela despedida amarga de Rendell Locke.

O segundo diz respeito à magia que circula na Keyhouse, envolvendo chaves com poderes enigmáticos. A primeira pessoa a ter contato com elas foi Bode, o filho mais novo de Rendell e Nina, que começou a ouvir sussurros estranhos na casa, sem saber do que se tratava.

Todavia, quando a criança estava tirando fotos em um poço um tanto quanto distante localizado nas redondezas da mansão, acabou tendo contato com uma “criatura” considerada um Eco e de nome Dodge (Laysla De Oliveira), que explicou um pouco sobre os sussurros e algumas das incógnitas ao redor das chaves. 

Assim, Bode ouve mais sons esquisitos e encontra outros desses artefatos valiosos e sinistros, descobrindo em momento posterior que Eco é uma entidade com intenções malignas e capaz de tudo para obter tais chaves, passando a atormentar a família Locke.

Aos poucos, Kinsey e Tyler, irmãos mais velhos do Bode, também são inseridos nessa trama. Os três descobrem como utilizar cada chave e fazem proveito delas em algum momento, sendo que com o tempo descobrem como podem ser perigosas e decidem manter segredo.

Com o decorrer da história, a mãe deles e mais alguns amigos/conhecidos, tanto das crianças quanto da Nina, acabam sendo envolvidos nesse mundo sobrenatural, sem possibilidade de voltar atrás. Juntos, tentam enfrentar o ser que aparenta ter vindo de outro mundo e proteger as chaves a todo custo, assim como as próprias vidas.

ABRINDO A PORTA PARA UMA TRAMA DE SUCESSO?

É possível afirmar que a série televisiva produzida pela Netflix é uma história carregada de aventura, de amor e de magia, pesando principalmente neste último, vez que possui um tom de fantasia adolescente, tal qual Stranger Things. 

Pode-se dizer que há muitos aspectos semelhantes, como um grupo de amigos enfrentando o mal, uma cidade pequena e um grande terror à espreita com toques de descrença e descobertas inimagináveis, poderes imensuráveis, estereótipos escolares (grupos de nerds e populares), referências à grandes obras e famosos de gêneros diversos (Star Wars, Friends, Harry Potter, Tom Savini, Billie Eilish…), dentre outras proximidades. 

Tyler (Connor Jessup), Bode (Jackson Robert Scott) e Kinsey (Emilia Jones).

Apesar disso, Locke & Key consegue criar o seu diferencial, sustentado principalmente pela ideia principal do roteiro, que seriam as chaves e os mistérios ao redor delas. Os poderes que elas possuem são apresentados de uma maneira singular nos episódios, com cada uma ganhando um espaço relativamente significativo de explicação e uso, sendo que até agora foram apresentadas 12 chaves, sem especificação definitiva se são as únicas ou existirão mais. 

Sobre tal aspecto, pode-se apontar que existe muita criatividade nas habilidades atribuídas às chaves, com umas sendo mais interessantes, úteis, fortes e, consequentemente, mais perigosas que outras. Como exemplo, há à Chave de Qualquer Lugar, em que a pessoa pode passar por qualquer porta do mundo, desde que tenha visualizado ela antes, e a Chave da Planta,  com o poder de mexer nas memórias de alguém, escondendo-as e trazendo de volta quando desejar.

Salientando ainda mais esse universo fantasioso, puxado para um ar muito maior de aventura do que sombrio, deve-se citar o design de produção aliado a efeitos especiais criativos, fotografia simples, mas chamativa, além de combinar com o tom da série, e uma trilha sonora convidativa.

A partir disso, cria-se um combo de envolvimento com a história e personagens, tensão e olhos impressionados com o ambiente criado por cada chave, principalmente a da Cabeça, que permite acessar a mente de qualquer pessoa, onde lá dentro existe uma construção diferente para cada indivíduo.

ENTRE MENTES, IDENTIDADES E MEMÓRIAS…

Aproveitando esse gancho relativo à singularidade de cada ser, merece atenção ainda a atuação oferecida pelo elenco como um todo. Particularmente, nas primeiras aparições, há certa dificuldade em se conectar com a história e com os dramas vivenciados, essencialmente os adolescentes titularizados por Kinsey e Tyler, com os colegas coadjuvantes roubando a cena. 

Para exemplificar tal situação, trago à tona o grupo de amigos da Kinsey, que criaram e pertencem a um clube chamado Esquadrão Savini, em que todos são fãs de filmes de terror e querem produzir o próprio filme juntos. Por curiosidade, o nome é justamente para homenagear Tom Savini, técnico responsável por efeitos especiais muito conhecidos em filmes de horror, como Sexta-feira 13.

Dentro desse círculo de amizades existem dois personagens com maior relevância: Scot Cavendish (Petrice Jones) e Gabe (Griffin Gluck). O primeiro é o líder do esquadrão, enquanto o segundo exerce um papel de ombro amigo para Kinsey e vai ganhando mais importância ao longo da série.

Zadie Wells (Asha Bromfield), Gabe (Griffin Gluck), Kinsey (Emilia Jones), Scot Cavendish (Petrice Jones) e Doug Brazelle (Jesse Camacho).

Em todo caso, tem-se que a atuação de Scot foi uma das melhores, pois ele conseguiu se manter fiel ao personagem e todas as ações foram extremamente condizentes com os próprios princípios. Além disso, chegou a fazer par amoroso com Kinsey, conseguindo tornar as cenas interessantes e expressar os sentimentos de uma maneira bem viva, ganhando destaque quando na presença dela.

Sobre o Gabe, apenas o comentário de que terá um papel provavelmente muito mais marcante na segunda temporada. A atividade desempenhada por ele na temporada atual foi um pouco incômoda, pois acabou formando um triângulo amoroso em Locke & Key (Scot, Kinsey e Gabe) e teve muito tempo desperdiçado nisso, ocasionando em um desfecho bem ameno entre os três e sentimentos pouco explorados, no entanto, o ator entregou uma boa atuação e deixou um ótimo gancho para a próxima produção. 

Além do Petrice Jones, merece relevância a atriz responsável por interpretar a mãe, Nina, e o ator que fez o filho mais novo, Bode. Os dois se encaixaram muito bem na função, ela por conseguir demonstrar a preocupação necessária e o carinho e amor pelos filhos, trazendo bastante carga emocional, ainda mais ao falar sobre Rendell ou sobre o vício em bebida e as breves fases de recuperação e recaída.

A criança, por outro lado, trouxe bem a experiência infantil… a curiosidade, a aventura, o jeito de se relacionar com os irmãos e a vontade de não ser visto como um bebê. Ele também soube passar bem a inocência, o medo e a ansiedade que sentiu por ter que “enfrentar” os vilões de Locke & Key.

Quanto ao Tyler, irmão mais velho da família Locke, é possível notar que ele sente remorso e culpa, sente-se perdido e confuso sobre tudo, até mesmo incapaz de ajudar e guiar os irmãos, ou seja, assumir as responsabilidades do pai. Reparar todos esses pontos é de fácil percepção, e o ator que o interpreta possui muito carisma, mas faltou uma sensação a mais de peso dramático e convencimento ao redor dele.

Importante mencionar que tanto Tyler quanto Kinsey passam por mudanças durante a série. Ele inicialmente se envolve com um grupo bem ruim e mais tarde vai encontrando o lugar ideal para permanecer, além de conquistar um novo hobby.

Em relação à Kinsey, ela tem um bom grupo de amigos desde o início (mesmo querendo evitar se relacionar) e é a que mais passa por alterações internas, sendo muito explorada e focada, de modo que acompanhar os passos da garota se torna bastante intrigante e imprevisível.

O mal à espreita em Locke & Key

Dodge (Laysla de Oliveira)

Aliás, os vilões não podem ficar de fora. Lembram da mencionada Dodge? Então, ela não trabalhou sozinha, na verdade, manipulou alguém para ajudá-la, chamado Sam Lesser (Thomas Mitchell Barnet), um dos estudantes da escola em que Rendell Locke era conselheiro escolar.

Sam, por ter vindo de um lar problemático, manifesta grandes sensações de insegurança e necessidade de aceitação, sabendo disso, a vilã se aproveita da mente fraca do garoto e conquista a confiança e lealdade dele, que acaba por sujar as mãos em nome dela. 

Os dois têm muitos pontos positivos no trabalho executado por eles: as expressões, o desenvolvimento, o contexto por trás das ações, a sintonia, dentre outros atributos.

A personagem Dodge combinou muito com a atriz e ela parece ter nascido para o papel, porém, numa visão pessoal, senti mais apreço pelo Sam, provavelmente pelo passado apresentado e pelo desfecho que ele recebeu, foi tudo bastante interessante e até inusitado.

Incógnitas despertadas pelas amizades de Rendell Locke

Por último, mas não menos importante, o grupo de amigos de adolescência de Rendell Locke, formado pelos seguintes membros: Erin Voss (Joy Tanner), Ellie Whedon (Sherri Saum), Kim Topher (Ellen Giddings), Jeff Ellis (Aidan Shaw), Mark Cho (André Dae Kim/Ken Pak) e Lucas Caravaggio (Felix Mallard). Os mais importantes no tempo presente são Erin, Ellie e Lucas, pois escondem muitos segredos e sabem muitas informações preciosas do passado, dando todo o ar de suspense, reviravolta e ação que Locke & Key precisa. 

Mark Cho (André Dae Kim/Ken Pak), Ellie Whedon (Sabrina Saudin/Sherri Saum), Lucas Caravaggio (Felix Mallard), Rendell Locke (Nick Dolan/Bill Heck), Erin Voss (Nicole James/Joy Tanner), Kim Topher (Ellen Giddings), Jeff Ellis (Aidan Shaw).

Ademais, há muitos flashbacks e comparações entre passado e presente, traçando um bom paralelo de quando Rendell morava em Matheson e de agora, com Tyler, Kinsey e as novas amizades. É mostrado, de modo cativante e convidativo, um pouco de como foi a experiência deles com as chaves e como viraram os guardiões delas, acontecendo a mesma coisa no presente, ainda que de uma maneira bem diferente e mais cuidadosa (até então…), deixando o espectador com muita vontade de conhecer a Keyhouse de perto e querendo brincar um pouco com as chaves também.

PALAVRAS-CHAVES PARA A SEGUNDA TEMPORADA

Como afirmado anteriormente, a série veio de uma HQ de mesmo nome, e um dos pontos ressaltados por quem assistiu Locke & Key é justamente a ausência da violência e de sangue, ou seja, apostaram numa zona de conforto, que é a fantasia adolescente com uns indícios de terror, porém sem exageros visuais. Nesse sentido, adotaram uma história mais segura e repleta de fórmulas que funcionam para atrair mais público. 

No meio do caminho, calha que se perderam em alguns momentos, posto que apresentaram algumas resoluções previsíveis e trouxeram ações e desenvolvimentos completamente incoerentes, apenas para conseguir encaixar os próximos suspenses e acontecimentos.

Outra diferença relevante com o mundo da HQ é que trouxeram chaves que não existiam na obra original, como a Chave Espelho (entra em um mundo cheio de espelhos podendo se perder para sempre nele), a Chave Fósforo (coloca fogo no que desejar), a Chave da Planta (relacionada às memórias, como explicado antes) e a Chave da Identidade (muda a aparência da pessoa).  Além disso, trouxeram personagens novos, como Eden (personagem odiada e temida por Kinsey, pertencente ao grupo dos populares), Zadie (colega de Kinsey), Gabe e Doug (colega de Kinsey).

Esses dois acréscimos interferem bastante no desenrolar da série, trazendo e mantendo mais mistérios, já que na HQ contém todas as respostas. Também influencia no desdobramento da intensidade e profundidade dos personagens, que deixou um pouco a desejar, por focar mais em explicações e apresentações do universo de Locke & Key no primeiro contato com o espectador. 

A partir disso, dá para dizer que a série brinda o espectador com uma trama envolvente, contudo, não atinge toda a capacidade dela, justamente por adotar um tom mais brando e incapaz de alcançar todos os impactos de medo, desespero e necessidade que deveriam ser sentidos por causa da Dodge. Na verdade, o seriado finaliza muito mais com sentimentos de curiosidade e ansiedade pelo que está por vir do que a sensação de ápice pelas coisas que já aconteceram. 

Não obstante, dá para torcer pela família Locke e se encantar com cada momento de novas descobertas, mesmo que desejando um caminhar mais rápido em alguns instantes, como nos momentos dos relacionamentos amorosos (Scot, Kinsey e Gabe ou Tyler e Jackie (Genevieve Kang)) apresentados na temporada. 

Importante ressaltar que esse é um dos fatores que não deu muito certo na série, geralmente existe muita discussão sobre os casais de uma obra, no entanto nessa poderia facilmente cair no esquecimento… faltou química e sentido, sendo que as histórias de aventura e magia eram muito mais empolgantes e interessantes (Bode roubou a cena várias vezes por causa disso, ele era o mais envolvido com a casa).

Assim, resta aguardar pela segunda temporada, sem data prevista mas confirmada, e torcer para conseguirem encobrir as falhas apresentadas na primeira, oferecendo um roteiro com menos furos questionáveis e personagens com mais consistência em termos de decisões, personalidades e desenvolvimento.  

Topo