Depois de ler alguns comentários muito positivos, resolvi dar uma chance à série My Brilliant Friend, uma parceria da HBO com as italianas RAI e TIMvision. Talvez minhas expectativas fossem mesmo altas — o que nunca é ideal ao iniciar algo — mas, para minha surpresa, não amei inicialmente os primeiros episódios. Me vi insistindo e tentando driblar o tédio para conseguir terminar os três primeiros, o que levei uma semana para fazer. E que bom que eu o fiz.

Ano passado, ao ganhar o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira por Roma, o renomado diretor e roteirista Alfonso Cuarón, mexicano, brincou que ele mesmo cresceu assistindo filmes “de língua estrangeira”, tais como Cidadão Kane e Poderoso Chefão. Da minha casa, no nordeste brasileiro, eu assistia a cerimônia e entendi a piada no na mesma hora, talvez até tenha dado risada.

O humor está em considerar dois filmes tão básicos para qualquer amante de cinema como “filme estrangeiro”, afinal, eles são hollywoodianos, nasceram na casa da sétima arte, não? Mesmo para mim ou para o Cuarón, ainda soa estranho chamar de “estrangeiro” um filme estadunidense. E isso diz muito sobre como temos consumido essa indústria.

Indo na contramão das séries mainstreams, My Brilliant Friend encanta pelas suas sutilezas num ritmo próprio e magistral.

Audiovisual é uma linguagem e, como tal, deve ser aprendida através da prática. Isso é conhecimento geral para qualquer um que busque entender um pouquinho mais sobre a área. O que não fazemos, porém, é refletir o que isso significa para muitos de nós que fomos “alfabetizados” num formato tão específico.

Desde a chegada do cinema e da TV no Brasil somos bombardeados com conteúdos americanos e, para aqueles que nasceram a partir de meados dos anos 80, houve uma adaptação desde crianças ao consumo de séries infantis e desenhos animados prioritariamente americanos ou japoneses. Assim, crescemos adaptados a esses padrões de montagem e edição, enquadramento, diálogo, atuação, arte, sonorização etc.

Mesmo aquelas obras que não necessariamente são dessas nacionalidades, costumam se aproximar do estilo caso venham a fazer sucesso por aqui. Esse é um dos motivos, por exemplo, que leva à significante rejeição do público mais jovem ao formato das novelas ou ainda ao estranhamento que sentimos ao assistir 3% (primeira série brasileira da Netflix que, por outro lado, foi bem recebida lá fora).

Mas voltando à My Brilliant Friend e ao meu forte incômodo inicial. Baseada no romance de Elena Ferrante, a série conta da amizade entre Lenu e Lila desde meninas, crescendo num bairro paupérrimo de uma Nápoles que enfrenta as consequências do pós-guerra.

Em meio à violência, a desigualdade e o machismo, as duas encontram na literatura e nos estudos a esperança para um dia saírem daquela situação — e esses dois pilares são decisivos para toda a narrativa: Lenu, vinda de uma família um pouco menos endividada e com o apoio da professora, segue com os estudos, encontrando nos livros o refúgio para as dores da adolescência; enquanto Lila é obrigada a abandonar a escola ainda na infância para ajudar na sapataria do pai e tem na leitura um prazer secreto.

Aquelas meninas que outrora tinham a mesma rotina passam a se distanciar mais e mais, porém ainda unidas por um enorme afeto uma pela outra — afeto esse que ora se revela como admiração, ora como uma arrebatadora, mútua e pura inveja.

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Cena da série My Brilliant Firend (HBO)

Meu primeiro estranhamento veio com escolhas da direção de arte, com cenários e figurinos dessaturados numa escola infantil, que logo percebi representar a pobreza extrema das personagens. Foi o ritmo lento, quase contemplativo, da maioria das cenas, porém, que me incomodou de fato. Mesmo quando as crianças, comumente energéticas, eram a centralidade da sequência, os planos se arrastavam por longos segundos, focando no olhar e nas expressões das personagens mesmo após as falas serem ditas — isto é, se houvessem falas. Somando-se a isso, a protagonista Lenu, vivida por Elisa Del Genio (criança) e Margherita Mazzucco (adolescente e adulta), carrega com ela uma melancolia e timidez que a impedem de ter expressivas reações à tudo que acontece à sua volta. Mesmo já tendo assistido diversos filmes que fogem ao mainstream e se assemelham a estas características, houve uma repulsa maior por saber que se tratava de diversos episódios seguidos no mesmo ritmo.

Acontece que essa estética aparentemente tediosa, principalmente quando comparadas às super produções televisivas que muitos de nós estamos habituados, se mostra a escolha ideal para narrar a rotina do lugar. Porque sim, Lenu e Lila são apenas objetos para contar a história daquele que me parece o verdadeiro personagem principal: o bairro. Em pouco tempo aprendemos a como funciona pequena comunidade, seus costumes, sua estrutura social e geográfica e, principalmente, sobre as famílias que lá residem. Aprendemos a torcer pelos filhos daquela mulher que enlouqueceu ao ser amante, a criar afeto pela família cujo pai foi preso injustamente e proporcional desafeto pela família rica que o mandou prender. 

O ritmo lento, a fotografia crua, a arte dessaturada e as atuações envolventes nos ajudam a não nos deixar levar pela agitação e esquecer todas as dificuldades ali representadas.

Contraditoriamente, o enredo de todos avança muito rapidamente e a cada episódio sentimos que tudo virou de cabeça para baixo. Fazendo contraste com as típicas vizinhanças italianas, que falam depressa e aos gritos (muitas vezes permitindo que todo o bairro fique a par de assuntos pessoais), o ritmo lento, a fotografia crua, a arte dessaturada e as atuações envolventes nos ajudam não só a digerir tudo que assistimos, como também a não nos deixar levar pela agitação e esquecer todas as dificuldades ali representadas. É aí que se revelam dois outros eixos centrais à história: o machismo e a luta pela revolução. Sem nunca deixar a narrativa de lado, os roteiristas (dentre eles a própria Elena Ferrante) conseguem levantar reflexões profundas que vão da independência da mulher sobre a vontade de engravidar até as mazelas do capitalismo tal qual defendidas pelo comunismo. É daquelas raras obras que te fazem sentir que está evoluindo intelectualmente enquanto assiste — e não o contrário. Ah! e, claro, ainda traz como cereja do bolo um envolvente romance adolescente em meio à toda aventura de uma boa história come-of-age.

Com uma primeira temporada incrível, uma segunda ainda melhor e a terceira já confirmada, My Brilliant Friend me ensinou muito. Sobre amizade, relacionamentos, autoconfiança, independência; sobre a Itália daquele período e sua riquíssima cultura; e sobre a beleza da diversidade audiovisual. Por muito pouco quase deixei de apreciar a melhor série que vi esse ano. Esse texto é um convite e um pedido para que você também insista um pouco mais nas suas descobertas.

https://www.youtube.com/watch?v=V2Yk8xJkMKQ
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